Recordações

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"Somos eu e você..." ele disse baixinho ao meu ouvido. "o Universo e o viver, presenciando a dádiva.'"
Se eu fechar bem forte os meus olhos, posso recordar-me de todos os dias bons e felizes que vive naquele lugar, no lugar que eu chamava de lar. Se eu fechar bem os meus olhos, posso recordar-me da Primavera de 2011, o sol sobre nossa cabeça, os sorrisos, os olhares. Toda a minha família, toda a vizinhança, juntos, acreditando que tudo iria ser diferente. Se eu adormecer e me permitir voar para longe desse local, posso lembrar de como éramos felizes. De como as crianças eram livres e alegres, de como elas brincavam nas ruas pacíficas... Posso lembrar-me das mulheres contentes, cantarolando canções de nossas tradições, sorrindo. 15 de Março de 2011 talvez tenha sido o último dia em que realmente fomos felizes, o último dia em que tínhamos conhecimento da existência da palavra paz.
Tudo aconteceu muito rápido. Recordo-me de estar junto com Ella, minha irmã mais velha, a sala escrevendo cartazes para irmos a praça central. Mamãe estava aflita, ansiosa, esperançosa... As pessoas faziam barulhos do lado de fora, gritavam palavras de ordem enquanto dirigiam-se para o local das manifestações. Todos nós estávamos felizes, todos estávamos esperançosos. Naquele mesmo dia, a noite, sairmos todos em direção a Praça, eu, papai, mamãe e Ella. Papai era jornalista aposentado por ferimento irreversível em guerra, um amante de boas histórias de conflitos sociais. No auge de seus 50 anos estava escrevendo um livro sobre guerra, que jamais fora publicado. Mamãe era o pilar família, e, antes de ser só a mamãe, era cabeleireira em um salão em Londres, onde conheceu o papai e se mudou com ele para a Alepo, onde dois anos após o casamento nasceria sua primeira filha: Ella. A Ella não era minha única irmã, eu tinha outra chamada Penn. A Penn apaixonou-se por um jihadista e nunca mais houve um contato entre ela e a nossa família. Bom, Ella era minha irmã mais velha, a que estava na faculdade e que iria formar-se em Direito, o orgulho da família em seus 22 anos. Ella era simpatizante da Revolução e não fazia questão de esconder, ninguém em minha casa fazia questão de esconder, não pensávamos que perderíamos nossas vidas por apoiar algo, mas logo iriamos descobrir. No fim dessa árvore genealogica estava eu: Sofie. Apenas isso, apenas a Sofie. A Sofie que não sabia o que queria ou para onde iria depois do colégio, a pobre Sofie que perdeu tudo e todos e descobriu da pior forma as consequências do ódio. A pequena garota que viu sua família unida e feliz dissolver-se em pó. No caminho para a Praça, íamos fazendo piadas, rindo pelas ruas da cidade em direção ao nosso destino, com nossos cartazes em baixo do braço, imaginando novas possibilidades de vida. O frio sobrava meu cabelo grosso, eu não usava véu pois não era casada, diferente de mamãe e Ella, e isso dificultava as coisas para mim. Perto do local, encontramos a família de Cam, filho de um grande amigo do papai e meu ex melhor amigo na época. Eles juntaram-se a nós, os adultos na frente conversando e apenas eu e ele atrás, em silêncio. Existia naquele tempo, regras muito rígidas de educação, por exemplo: se adultos se encontram e começam a conversar, menores de 18 anos afastam-se instantaneamente. E Cam e eu tínhamos a mesma idade, 15 naquele tempo, o que nos excluía de todo aquele papo legal.
Éramos bons amigos até descobrirmos algo há mais. Enquanto caminhávamos em direção aos revoltosos que balançavam bandeira e gritavam a plenos pulmões, voltei ao dia em que ele me contou que gostava de mim muito mais do que amiga. Lembro de não tê-lo visto durante toda manhã e ter encontrado um bilhete bem dobrado dentro do meu armário, nele tinha escrito em letras garrafais horrendas que eu reconheceria té debaixo d'água: "Mão na orelha, coisa linda.Me encontre depois da aula atrás da Mesquita. Urgente. -C" Pensei ter acontecido alguma coisa e literalmente corri até o local, que era bastante perto do que antes era nossa escola. Ao chegar, ofegante e descabelada, lá estava ele, encostado em nossa árvore favorita, com duas maçãs em mãos, uma ele jogou para mim, que agarrei, e outra ele começou a comer. Comecei a ficar irritada por ele ter me preocupado e falar descontroladamente que ele não podia fazer isso e que tinha me deixado preocupada e, simplesmente, de repente, como se não fosse nada, ele falou: "Acho que te amo, Sofie" e ao lembrar daquilo, eu sentia uma estranha dor no peito. Depois dessas cinco palavras eu sai correndo, deixando a maçã cair no chão e nunca mais olhei na cara dele. Até aquela noite, onde a Lua iluminava seu cabelo loiro impecável e seus olhos verdes olhavam diretamente para mim. Eu sabia que gostava dele, gostava muito, mas algo me arrastava para longe sempre que eu ouvia seu nome. Eu sentia, e sabia que ele sentia também, o calor que nossa proximidade transmitia, os nossos olhos procurando abrigo um no outro. Pensei naquele momento que não podia ficar calada, que não podia perder a oportunidade. Eu falei algo, que não lembro mais hoje em dia, mas falei, e foi através dessa fala que voltamos ao que éramos, que voltamos ao que somos.

O frio acabou com todos os meus devaneios e toda a minha felicidade dissipou-se, a simples felicidade de lembrar como eu era. Olhei em volta da cabana em que estávamos, Cam dormindo ao meu lado em um sono profundo e agoniado. Hoje não havia tido comida, por isso dormíamos com fome e, principalmente ele, estava mais faminto do que eu. Sabia que ele privava-se de algumas refeições para doar as mulheres e crianças pidonas do lado de fora, sabia que ele se arriscava roubando dos superiores um pão para me fazer uma surpresa a noite. Eu sabia de tudo. Vi o garoto que me apaixonei deitado ao meu lado, com seus cabelos mais que curtos e seu semblante cansado. Vi sua magreza por trás das roupas velhas e sujas e pensei: eu nunca me apaixonaria de novo desse jeito, nunca amaria alguém como amo ele, a pessoa que sempre será o homem da minha vida. E foi pensando em um futuro longe daqui que adormeci, no chão de pedras da cabana, agonizando para que tudo que eu acreditasse, torna-se, enfim, realidade.


OBSERVAÇÕES:

1. Não estou, em hipóteses alguma, tentando romantizar guerra ou tragédias. Quando tive a ideia de criar Cam e Sophie, foi pensando no fato de que existiam vários romances sobre Primeira/Segunda Guerra Mundial, algumas civis ao redor do mundo... e poucas, ou nenhuma, sobre a Guerra na Síria, que já ultrapassa os 5 anos e já dilacerou muitas paixões.

2. Ficou realmente muito grande. Porém, minha inspiração é mais livro do que fanfic, já que não envolver nenhum famoso na história.

3. Fatos e datas são verídicos, pesquisados e comprovados.

4. Embora seja romance, vou tratar muito sobre a matéria de História, então, quem ama, assim como eu, história, vai se sentir em casa. 

BJSSSSSSSSSSSSSSSS

O amor que não deixamos para trásOnde histórias criam vida. Descubra agora