Parte dois

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No natal, os funcionários do asilo montavam uma enorme mesa, mesmo que tivesse pouca comida sobre ela. Não perdiam tempo elaborando pratos dignos de bom humor mútuo, muito menos enfeitando a casa. Seus semblantes, ao que parecia, continuavam os mesmos. As mesmas máscaras do ano passado cobriam a face de cada ser que trabalhava em um dia tão importante.

Os pacientes apenas poderiam comer no horário de almoço, antes disto, um pão dormido e um café do dia anterior era servido. Não importava se sentia fome há algumas horas, o jeito era opor-se a isso porque não tinha a regalia de comer a qualquer momento.

Além das atividades que o senhor Daniel praticava quando era mais novo, a presença de fartura em cada ceia o encantava. Não podia estar mais abençoado, fazendo o que lhe deixava bem e cercado por pessoas que nutriam o sentimento mais bonito que existia, o amor.

Caminhou até o jardim de sua moradia. Fazia parte da rotina que criara após ser forçado a esquecer-se de seus obsoletos costumes. Assim que pisara na grama esverdeada, notou a presença de outra pessoa. Uma pessoa que não conhecia. Suas vestes eram comuns e calçava chinelos de borracha. Ele possivelmente mirava um ponto cego no conjunto de flores que jazia ao lado de um coqueiro.

Por ser uma cena minimamente intrigante, Daniel escolheu justamente o caminho que sanaria sua curiosidade. O jovem anteviu a aproximação de senhor, facilitando para que uma parte do interesse do velhote fosse findado instantaneamente. No entanto, isto não mudou o fato dele ainda querer saber o motivo que levara o garoto ir a um lugar solitário como aquele.

- O que faz aqui, rapaz? - indagou o velho, com as mãos atrás das costas.

Um sorriso sucinto tracejou os lábios avermelhados do jovem.

- Visitar.

Daniel olhou para trás, em direção à casa. Ele imaginava quem seria o sortudo que ganharia uma visita inesperada hoje, porque se a pessoa soubesse que alguém viria, a mesma faria questão de contar aos quatro ventos para que todos soubessem.

- Quem? Posso saber?

O garoto desviou seus olhos das alpínias, hibiscos e rosas do deserto, os três tipos de flores que faziam parte do conjunto do qual agradava tanto o senhor Daniel. Olhou de relance para o velhote, divertindo-se a cada pergunta que o mesmo lhe fazia.

- Todos, na verdade – respondeu singelamente.

Agachou-se e começou a brincar com as flores.

- Então veio participar da ceia conosco?

- Não exatamente para isso. Como se chama, velho? - indagou, esboçando um leve sorriso.

- Daniel e você, rapaz? - retrucou, curioso.

- Alex.

Levantou-se para dar uma volta no jardim e Daniel o acompanhou, vagarosamente.

- Eu sou como vocês – proferiu, tentando tirar uma mancha de sua bermuda, mas em vão.

- Como nós? - perguntou o velho, franzindo as sobrancelhas.

- É. Solitário. A família de vocês vêm visitá-los?

Em resposta, Daniel balançou a cabeça, negando.

- Então. Eu cresci na rua, sem uma família. Mas consegui arrumar um emprego no lixão aos dez anos. - Parou de falar e prosseguiu: - Ainda sou burro, porque nunca estudei e, apesar de ninguém nunca ter me ajudado quando mais precisei, gosto de ajudar aqueles que também são necessitados e fazer companhia àqueles que vivem sozinhos.

O velho sorriu largo, mostrando os dentes amarelados.

- Você lembra alguém que eu conhecia – murmurou, parando de andar e apoiando-se de costas em um coqueiro próximo. Alex o imitou, ficando do lado oposto ao do velho.

- Quem? - Eles quis saber.

Um, dois, três segundos e meio passaram-se sem resposta. Daniel mirou o céu tingido de azul bebê. Esse ano não choveria como no ano passado, concluiu mentalmente.

- Eu mesmo – sussurrou quase para si próprio.

- Por que esqueceu de quem era? - indagou, sem conseguir entender o velhote. Afinal, para ele, não fazia sentido um ser humano esquecer de si mesmo sem que perdesse toda a memória.

Daniel deixou escapar um riso baixo.

- Bem... a partir do momento que as pessoas que ama esquece de você, você não tem muito o que fazer. Estar neste asilo limita muito as oportunidades de ser quem realmente sou. Principalmente rodeado de gente da minha laia.

Sorriu novamente, irônico. Foi para a varanda e sentou-se na cadeira de plástico, pois suas pernas débeis não o aguentaria por mais tempo. Suspirou profundamente, relaxando os ombros que outrora estavam absurdamente pesados devido a conversa sincera que teve com o jovem rapaz de cabelo black power.

Um Senhor Natal [CONTO]Onde histórias criam vida. Descubra agora