A partir daí, nosso dia passou a ser governado pela lei de Murphy que diz que se alguma coisa puder dar errado, dará; e dará na pior hora, e da forma que cause o maior dano possível. A decoração do apartamento estava ok – aliás, estava pronta desde o início de dezembro. Todo o resto, no entanto...
Ficou combinado que cada um dos convidados traria um prato para a ceia, então, basicamente, só tínhamos que nos preocupar com a nossa parte, que consistia do purê de batatas e das batatas que eu pretendia assar para acompanhar o peru – este, comprado pelo Casanova; mas como ele não fazia ideia do que fazer para deixá-lo dourado e suculento, acabamos nos oferecendo para assá-lo, assim, pelo menos, era certeza de que não comeríamos o bicho cru. E também resolvia o problema de ter que atravessar um pedaço de São Paulo com um peru assado no banco de trás do carro em plena véspera de natal. Assim não se corre o risco de ter o carro depredado no sinal e acabar chegando aqui só com o rabicó do bicho. Não que isso já tenha acontecido com alguém que eu conheça, mas nunca se sabe...
E Cristiana ainda iria fazer a sopa especial de vegetais, receita da avó dela, que, por tradição de família, garantia a quem comesse um feliz natal. Diz a lenda que havia um ingrediente secreto na sopa que garantia essa tal felicidade, mas, seja lá o que for, não parece ter tido qualquer efeito em mim nos anos anteriores. A menos que tenha sido camuflado pelo vinho tinto, né... Vai saber.
Nós já tínhamos temperado o peru na noite anterior, e eu usara o mesmo tempero nas batatas, que teria que assar separado, porque não caberia tudo de uma vez no nosso forno. Mas antes que pudéssemos ter a chance de colocar qualquer coisa para assar, Valentina, uma das convidadas da noite, que mora no andar de cima, apareceu com o primeiro contratempo: ela tinha prometido trazer uma rosca de nozes – que deixou todo mundo com água na boca no natal do ano passado, salivando por mais um pedaço –, porém o forno dela escolheu justamente a véspera de natal para dar o último suspiro. Então ela trouxe os ingredientes, e pediu para assar a rosca no nosso apartamento.
Até aí, tudo bem; era só uma questão de organizarmos os horários, e tínhamos tempo de sobra para preparar tudo. Mas aí, enquanto eu colocava as batatas para assar – decidi assar primeiro as batatas, pois a forma era menor, e caberia a assadeira da Valentina ao mesmo tempo, o que nos deixaria com tempo de sobra para dar um bronze no peru até às oito da noite – o segundo infortúnio apareceu.
Era por volta das duas e meia da tarde, quando o Seu Ezequiel, porteiro do prédio interfonou para o nosso apartamento, e pediu para falar comigo. Tive a impressão de que ele tinha interfonado para o apartamento errado, porque, aparentemente, ele só queria me contar, com todos os detalhes, o desfecho da novela da árvore de natal do Seu Nonato, meu vizinho de frente, que finalmente foi entregue agora a pouco, depois de quase trinta dias de espera e muitas brigas com a loja – um drama que o prédio inteiro, ou pelo menos, a maior parte dos vizinhos, acompanhou. Mas a empresa que fez a entrega só levou até a portaria, colocou no elevador, apertou o botão para deixá-la subir sozinha – até porque a árvore era grande demais para que coubesse alguém no elevador junto com ela, fosse um anão, uma criança ou um animal de pequeno porte –, enquanto o Seu Nonato, que descera para assinar a entrega, subia no outro elevador para pegá-la lá em cima.
– Ah, que bom, Seu Ezequiel. Fico feliz que o Seu Nonato tenha conseguido receber a árvore de natal antes da páscoa – disse, sem muito entusiasmo, louca para me livrar da rádio portaria e voltar aos meus afazeres.
Cristiana começou a gesticular, querendo saber o que estava acontecendo, e eu gesticulei de volta que ele estava falando um monte de bobagens. "Não sei o que ele quer", acrescentei sem emitir som.
Enquanto isso, Seu Ezequiel prosseguia com a ladainha na minha orelha. Depois de emendar a novela do Manuel Carlos na do Silvio de Abreu, com participação especial da Ivete Sangalo no último capítulo cantando uma música da Cláudia Leitte, o porteiro explicou que enquanto o Seu Nonato subia no outro elevador para pegar a árvore no andar dele, a Dona Zélia, do apartamento 43 chamou o elevador lá na garagem; justamente o elevador que estava com a árvore de natal.
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Se Contar, Ninguém Acredita No Que Aconteceu Nesse Natal
HumorVéspera de Natal. Um dia em que você espera reunir a família, encher a pança de panetone, brindar com aquele vinho comprado para ocasiões especiais... Um dia que você deixa tudo planejadinho desde o meio de novembro. Mas véspera de natal também é aq...