Vaga-Lumes

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A noite se consolidava nos céus. Com ela, veio os cantos desafinados dos animais que não são vistos. Veio também a calmaria, trazendo consigo o cansaço, que se espalhou pelo corpo fatigado do viajante solitário.

Sem nem indagar-se sobre os próprios atos, montou algo que, com alguma imaginação, poderia ser chamado de acampamento: não mais que uma fogueira fraca e um saco de dormir. Precisava de mais algo afinal? Com certeza não se comparava com o conforto de uma estalagem, a bebida, o calor e a animação, mas de que isso tudo importava? Queria apenas aliviar o corpo exausto de caminhar. Por tudo isso, o acampamento lhe pareceu perfeito.

Eram poucas e esparsas as árvores que cresciam pela região, todas de frondosos troncos e donas de incontáveis folhas, algumas já se coravam com flores. Mesmo assim uma sombra se aproximou sorrateira. O andarilho apenas olhava para cima, não via o céu; não via coisa alguma. Estava ocupado demais perdido em seus devaneios. Também não viu o deslocamento do vulto.

"Belas, não é mesmo?" uma voz suave como a brisa quebrou o som hipnótico da noite.

Ainda em seus próprios pensamentos, o andarilho olhou em direção a voz. Esperava não ver nada, tinha certeza que não passava de sua mente pregando-lhe peças. Todavia havia de fato algo lá, uma forma feminina parcialmente iluminada pela luz das chamas. Possuía dois braços, duas pernas e uma cabeça proporcional, parecia uma mulher bela, delicada e de traços esguios; porém não parecia nem um pouco humana. Tinha pele perfeita de mais para ser real, as orelhas longas e magras, porém de uma beleza misteriosa, e os cabelos de tamanho médio, pouco mais compridos que os ombros, de aparência muito viva da mesma cor que o mais profundo oceano. Com certeza era um sonho. Decidiu perder-se nele.

"Hum... Sim, devem ser" respondeu sem nem ao menos entender a pergunta. "O que é você? E o que veio fazer aqui?" Soou com genuína curiosidade .

"Sou o mesmo que você, um viajante. Vi o fogo, e ele me pareceu de tamanho aconchego, que decide me juntar a ti... Espero não estar incomodando." Tinha o olhar perdido em direção aos céus e uma fala meio distraída.

"Não acho que esteja." Mentiu, estava.

A calmaria voltou. A noite, já mais silenciosa, era perturbada apenas pelo crepitar inconsistente da fogueira. Tudo emergia em sonolência, porém os pensamentos do viajante encontravam-se inquietos. A natureza de sua companheira era um tanto alienígena, além de tudo se sentia invadido, não se lembrava de tê-la convidado, mas ela parecia não se importar.

"De que será que são feitas?" A angelical voz indagou, retomando a conversa.

"O que?"

"As estrelas oras! não estamos falando delas?"

"Aah, sim... Lógico..." Calou-se.

No céu, além de infindáveis estrelas que pareciam se unir em rios aéreos de pura luz, via-se a lua minguante num tom pálido, e uma ou outra magra nuvem que deixava a luz do cosmos atravessá-la, todas livres, à deriva no vento.

"Gosto de imaginar que são vaga-lumes, voando sem destino por toda a noite." Insistiu ela.

"É... Quem sabe?" Respondeu sem ânimo. Não prestava atenção no que dizia. Observava a figura dela. Finalmente identificou o que ela era, mas não quiz acreditar, não passavam de história para crianças e delírios de beberrões que não viam a sobriedade a tanto tempo, quanto não viam os próprios pés por detrás da pança. Mas era inegável. Ela estava lá, estava na sua frente... Uma elfa. Decidiu sanar sua dúvida.

"Da cidade onde venho, os homens de ciência explicam que as estrelas, na realidade, são enormes esferas de fogo pálido. Alguns afirmam que podem ter o tamanho de vilas inteiras, mas acho que eles exageram, seria ridículo de tão grande. De qualquer modo, com certeza, não são vaga-lumes". Explicou com toda sua confiança. Na cara uma expressão de satisfação, por se demonstrar tão culto, ficou evidente

"Não, acho que são vaga-lumes mesmo. Afinal de contas o que vocês da cidade sabem sobre o mundo? É verdade o que dizem, que vocês dormem todas as noites cobrindo o céu? Como tem coragem de se privar de algo tão lindo assim? Se não sabem nem viver direito, como vão saber se são ou não vagalumes." Não soou como um deboche, ela se via legitimamente indignada. Mas o vilão não a entendeu dessa forma, e ficou um tanto ofendido.

  A brisa gelada trespassava pelos dois numa ágil dança. Levando em sua ciranda folhas caídas, brasas erguidas e as madeixas púrpuras do cabelo leve da elfa, que não tirava os olhos de seus belos vagalumes.

"Que seja o que te fizer contente então, nas faz diferença" Respondeu seco.

"Não se zangue, já carrega muitos pesares em seu coração" disse ela complacente

"E o que você saberia sobre isso?" Em sua voz muitas lembranças reprimidas estavam presentes.

"Sei que ainda há tempo para mudar de ideia, um destino trágico o aguarda nessa estrada" Seu timbre era puro como a luz das estrelas; dos vagalumes celestes. A noite inteira silenciou perante esse aviso, tudo se paralisava numa pintura azul, os cabelos dourados da elfa faziam o único contraste.

"Busco apenas aquilo que por direito é meu, não darei um único passo para trás"

"Então sua tragédia esta celada, uma lástima, começava a gostar de você" Sua face tornou-se triste, alfinetava o coração de qualquer ser que a visse dessa maneira. "Ainda tem uma longo trajeto a percorrer, e as estrelas não estarão no céu para sempre, até vaga-lumes precisam de descanso. Lembre-se que ainda há tempo, adeus."

Antes que o homem pudesse responder furioso, uma luz brilhou em seus olhos. Percebeu que o sol no horizonte nascia, e o céu se manchava de azul claro e laranja. Em sua mão havia uma rosa, branca como a espuma das ondas, pousado nela, um vaga-lume. Este acendeu sua luz e subiu aos céus, sumindo na aquarela do amanhecer. O viajante colocou a flor de trás da orelha, levantou acampamento e partiu. Apenas as cinzas da fogueira ficaram para traz.

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⏰ Última atualização: Jan 05, 2017 ⏰

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