Os últimos Gaussoc

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Quando  a  espaçonave  Beneroponte  entrou  na  órbita  de  Traud-Rópi tornou-se  visível  novamente.  Igórum  Ogaussoc  fora  o  engenheiro chefe  na  construção  da  imensa  espaçonave.  Sua  esposa,  Cádia Gaussoc,  apesar  de  ter  sido  a  Regente  e  comandando  os  gaussoctir na  Última  Guerra  das  Dinastias,  pouco  sabia  a  respeito  de  navegação espacial  e  viagem  no  tempo-espaço.  Igórum  era  o  Capitão  da  nave, e  numa  nave,  o  Capitão  é  o  rei.  Foi  ele  quem  inventou  o  elaborado e  tecnológico  dispositivo  de  camuflagem.  Levou  mais  dois  meses para  concluí-lo,  durante  os  quais  a  guerra  perdurou  numa devastadora  carnificina.  Mas  Igórum  sabia  que  o  sacrifício  era necessário,  senão  a  nave  seria  perseguida  e  destruída.  E  tudo  seria em vão.  Gaussoctir  nenhum  restaria.  Este  dispositivo  e  a  espaçonave foram  a  grande  invenção  da  Quinta  Era.  Alguns  historiadores inclusive  afirmam  que  foi  a  viagem  desta  espaçonave  camuflada  que iniciou  a  Sexta  Era  (embora  a  maioria  diga  que  foi  a  libertação  de Ibimará).   Graças  a  esta  camuflagem,  assim  que  saíram  da  atmosfera  de Es-Abarre,  entrando  no  vácuo  negro-estrelado  do  espaço interestelar  de  Idi,  a  espaçonave  ficou  invisível.  E  assim  aqueles quinhentos  mil  sobreviventes  puderam  viajar  milhares  de  anos-luz em  busca  de  um  novo  lar.  Igórum  foi,  na  verdade,  o  salvador  dos gaussoctir.  Ele  havia  planejado  com  sua  equipe  de  cientistas  chegar à  estrela  Marcabe,  a  qual  orbita  o  planeta  gigante  Ganimede,  que possui  vinte  luas  orbitando  ao  seu  redor.  Uma  destas  luas  é  Traud-Rópi:  um  dos  quinze  mundos  habitáveis  de  todos  os  sistemas  solares da  Galáxia  Idi.   Ganimede  orbitava  longe  demais  de  Marcabe,  e  Traud-Rópi seria  mais  um  corpo  frio  e  inerte  orbitando  num  dos  milhões  de sistemas  estelares  de  Idi.  Mais  um  Traud.  Mas  a  luz  da  estrela Marcabe,  depois  de  viajar  oitocentos  trilhões  de  quilômetros,  reagia com  os  gases  de  Ganimede  provocando  radiações  luminosas  que nutriam  a  vida  quente  no  Traud-Rópi.  Além  disso,  Traud-Rópi  não girava...  apenas  uma  face  era  voltada  para  a  luz  de  Ganimede,  cheia de  rios,  animais  e  florestas,  enquanto  a  outra  permanecia  morta, congelada  no  escuro.  Até  que  Gáurox  levou  seu  sol  para  lá  e  não conseguindo  fazer  orbitar  Traud-Rópi  (era  grande  demais  para  ele) então  pôs  na  órbita  de  Ganimede.  Isto  mudou  as  evoluções  dos  vinte satélites  de  Ganimede!  Gáurox  nem  previu  isto,  estava  fora  de  seus cálculos.  Traud-Rópi  aproximou-se  um  pouco  mais  de  Ganimede  e passou  a  girar  em  torno  dos  três  eixos!  Além  disso,  Ganimede filtrava  as  radiações  lesivas  do  Sol  de  Uquir.  Uma  luz  mais  rica  e balanceada  passou  a  vivificar  toda  superfície  de  Traud-Rópi!  Este  foi o  único  mundo  de  Idi  que  foi  beneficiado  pelo  Sol  de  Uquir,  e  que passou  a  viver  em  perfeito  equilíbrio  com  ele. Mas  somente  meia  dúzia  de  pessoas  na  Beneroponte  sabia talvez  a  metade  disso.  Num  lugar  alto  do  hemisfério  norte  de  EsAbarre,  numa  noite  escura,  com  auxílio  de  um  bom  telescópio, alguém  podia  observar  a  estrela  Marcabe.  E  só.  Igórum  olhava  para aqueles  es-abarrearaé  ciente  disso.  Eles  ocupavam  o  deque  principal e  todos  os  corredores.  Era  mais  seguro  para  a  aterrissagem.  Ou, menos  perigoso  que  os  compartimentos.  Finalmente  chegavam  ao seu  destino.  Igórum  olhava  seus  rostos  ansiosos.  Não  de  expectativa, mas  de  medo. Para  os  habitantes  de  Idi,  Traud-Rópi  era  uma  lua  selvagem, cheia  de  perigos  desconhecidos,  lar  de  bestas  ferozes  irracionais. Estes  es-abarrearaé  partiram  de  seu  planeta  para  lá,  para  uma  esfera que  nem  podiam  ver,  um  dos  milhares  de  corpos  orbitando  uma estrela  distante.  Partiram  para  lá  sem  chance  de  retorno. Abandonando  tudo:  família,  casa,  riquezas,  cultura  e  costumes,  ruas e  paisagens...   Uns  raros  volumes  nas  melhores  bibliotecas  de  Es-Abarre tratavam  da  geografia,  vegetação  e  fauna  daquele  mundo.  Quem  iria perder  tempo  lendo  isso?  Agora  era  tarde.  Sabiam  que  o  Império  de Uquir  reclamava  posse  de  Traud-Rópi,  mas  não  colonizava.  O Conselho  dos  Quinze  justificava  a  não  ocupação  explicando  que  era importante  preservar  um  mundo  sem  civilização,  como  uma  reserva de  biosfera  para  o  caso  de  uma  calamidade  galática.  Na  verdade,  não habitavam  este  satélite  de  Ganimede  por  desconhecerem  qualquer minério  ou  outro  recurso  natural  que  recompensasse  as  viagens;  e também  porque  até  os  Altos  Comandantes  tinham  medo  de  andar por  lá.   As  pessoas  tinham  tanto  medo  que  escondiam  o  medo, evitando  até  mencionar  o  nome  Traud-Rópi.  Alguns  se  arrepiavam quando  falavam  "Ganimede"  Encontrar  Marcabe  com  o  telescópio era  empolgante  para  uns...  Muitos  sequer  sabiam  que  existia  este mundo.  Nas  brincadeiras  de  perguntas  e  respostas  era  comum colocarem  uma  pergunta  deste  tipo: "Qual  o  satélite  habitável  que  orbita  o  planeta  Ganimede?" Era  uma  pergunta  dificílima  e  dava  um  clima  sombrio  no  jogo. Como tem todo tipo  de gente em Idi,  havia  quem  se preparava  a  vida toda  para  explorar  Traud-Rópi,  mas  claro,  eram  poucos,  e  tido  como malucos.  E  iam  mesmo,  porém  nunca  voltavam.  Eram  dados  por desaparecidos,  o  que  aumentava  a  fama  sinistra  de  Traud-Rópi. No  entanto,  os  mais  eruditos  habitantes  de  Idi  conheciam Traud-Rópi  por  outro  nome,  um  nome  que  Uquir  proibiu  de  se  falar na  Quinta  Era:  Beacan.   "Beacan",  Igórum  falou  para  si,  olhando  aquele  tumulto contido. Na  Terceira  Era  os  Luzeiros  dissidentes,  liderados  por  Ridupan Omaper  abandonaram  o  mundo  Caibir  decadente  e  fundaram  um reino.  Este  reino  não  tinha  fronteiras  para  chamar  o  que  estivesse dentro  delas  de  nação.  Diziam  que  seu  reino  era  Prumc.  Mas construíram  castelos  e  ergueram  monumentos  à  sua  história,  a  maior parte  deles  no  Traud-Rópi.  Acho  que  começou  aí  o  mistério  que envolve  este  satélite.  Esquivavam  do  nome  Traud-Rópi  e  chamaram seu  reino  de  Beacan,  que  significa  "o  ser  poderoso".  Eles expandiram  Beacan  secretamente,  influenciando  os  quinze  mundos, entronizando  reis,  derrubando  governos.   Milênios  após  a  vitória  de  Ibimará  na  Segunda  Guerra, Ridupan  Omaper  vendo  a  corrupção  de  sua  Ordem  decretou  o  fim deste  reino  e  se  exilou  em  Araida.  Dizem  que  ele  era  de  fato  araidara, o  primeiro  e  único  que  conseguiu  sair  de  lá.  Ele  alcançou  a capacidade  de  viajar  entre  os  mundos  prescindindo  de  animais, máquinas  ou  artefatos.  Diziam  os  eruditos  da  Quinta  Era  que  ele  se tornara  um  dussac  (mas  na  verdade,  nessa  época,  Ridupan  era  um baudros).   Foi  com  uma  esperança  desesperada  que  Igórum  escolheu Traud-Rópi,  para  encontrar  alguma  relíquia  do  antigo  Reino  de Beacan,  algo  de  poder  extraordinário  que  pudesse  usufruir  para salvaguardar  seu  povo...  mas  não  só  isso. A  viagem  dos  es-abarrearaé  durou  cerca  de  uma  semana, dentro  do  tempo  de  Idi,  mas  durou  quase  dois  anos  para  os passageiros  da  espaçonave,  devido  a  sua  locomoção  mais  rápida  que a  luz  e  pelo  aparelho  de  dobra  temporo-espacial  não  ser  tão  eficaz. Passaram  por  muitos  sofrimentos  durante  a  viagem.  Pessoas morreram  doentes,  por  falta  de  medicamentos  e  condições  de tratamento;  outras  morreram  desnutridas  devido  ao  severo racionamento  de  comida... E Igórum teve de aprender  a  ser  Capitão, porque  no  final  das  contas,  recorriam  a  ele.   Navegaram  sempre  com  Marcabe  à  frente.  Enfim,  agora avistavam  o  enorme  planeta  Ganimede,  com  seus  gases  luminosos alaranjados,  pelas  janelas  embaçadas  da  espaçonave. Chegavam  no  momento  preciso,  talvez  um  pouco  tarde... acabara  a  água  no  dia  anterior.  Da  comida,  apenas  restos  putrefatos. Suas  roupas  estavam  imundas;  suas  peles,  pegajosas.  A  nave  fedia. Todos  eles  fediam.  Não  havia  muito  mais  o  que  fazer.  Começaram os  procedimentos  de  aterrissagem.  Muitos  já  tinham  se  curado  da amargura  e  dor  de  fugir  do  próprio  mundo,  abandonando  pais  e filhos  mortos  e  vivos  a  aniquilação.  Então,  quando  avistaram finalmente  a  atmosfera  rosada  de  Traud-Rópi,  a  ferida  tornou  a  se abrir,  bem  na  cicatriz  dolorosa,  mas  agora  enchendo  de  angústia  e medo.   "Traud-Rópi" Murmuravam  alguns  es-abarrearaé,  amontoados  pelas  janelas da  espaçonave.  Porém  muitos  evitavam  pronunciar  este  nome,  e afastados  das  janelas,  viravam  o  rosto,  numa  ansiedade  paradoxal, sofrida  por  ter  que  descer  naquela  lua  misteriosa,  e  se  espalhar  sobre ela.   "Traud-Rópi" Ouvia-se,  mas  nunca  pronunciado  com  entusiasmo.  Era irrefreável. Para  onde  mais  poderiam  ir?  Poderiam  alcançar  Ibimará.  Mas o  que  sabiam  de  lá  era  que  o  Império  oprimia  os  ibimararaé  ainda mais.  Ah!  Se  soubessem  que  Ibimará  estava  se  libertando!  Tudo  teria sido  diferente.  Tão  diferente  que  talvez  eu  nem  estivesse  aqui  vos contando  esta  história.   Que  caos  de  sentimentos  tinham  esses  tripulantes! Determinação,  ódio,  pavor,  solidão.  Típico  dos  gaussoctir.  Contudo, estes  viajantes  choraram  pelo  espaço  menos  que  os  que  ficaram  em Es-Abarre.  Talvez  não...  os  que  ficaram  já  nem  existem.  Uns  já  não aguentavam  a  ansiedade  ao  continuar  vendo  Traud-Rópi  pelas janelas  e  se  afastavam,  enquanto  outros  se  empurravam  para  chegar às  janelas,  sem  aguentar  mais  ficar  sem  ver,  também  pela  ansiedade. Será  que  sabem  que  é  a  última  chance?  Igórum  se  perguntava. Vendo  o  medo.  Medo  do  que  aconteceria  no  fim.  Mas  o  medo  de Igórum  não  era  esse.  O  medo  dele  era  o  medo  do  fim.   O  solo  se  aproximava  depressa.  Igórum  estava  com  seus oficiais  e  os  tripulantes  mais  dispostos  para  lutar  próximo  aos portões.  Tinham  armas  amarradas  ao  corpo.  Armas  arcaicas: espadas,  machados,  facas...  armas  que  não  sofreriam  com  a dissociação  quântica.  Deveriam  estar  prontos  para  lutar  contra  as feras  que  tanto  falavam  terrores  durante  a  viagem.  Ou  ainda, poderiam  ter  sido  perseguidos  de  algum  modo,  e  era  possível  um exército  uquirin  estar  formado  no  solo,  aguardando  a  chegada  deles. Não  penseis  que  eles  eram  fracos.  Como  vos  portaríeis?  Estes  esabarrearaé  eram  os  escolhidos  dos  gaussoctir,  com  séculos  sendo experimentados  na  guerra  e  na  ciência.  Ainda  assim,  mortais.   Barulho  crescente.  A  fuselagem  se  chocava  contra  a  atmosfera. A  nave  estremecia  como  se  estivesse  para  se  romper.  Estavam agitados.  O  Imediato  Cresmir  Aracon  falou  alto  e  firme: –  Atenção  ao  Capitão! Igórum  Ogaussoc  estava  ao  seu  lado.  Tinham  combinado  que ele  discursaria  para  eles.  Mas  naquela  iminência  de  morte,  com  os estrondos  ensurdecedores,  gritou  apenas:   –  Agachai-vos.  Segurai  firmemente!  Haverá  forte  impacto! Durante  a  viagem  não  se  ouvia  ruídos  de  fora  da  espaçonave, apenas  um  ranger  grave  e  metálico  algumas  vezes,  e  todos  ficavam alertas.  Se  a  nave  rompesse  ao  meio,  a  morte  seria  rápida  no  frio  do espaço.  E  agora,  esta  queda  assustadora  permitia  apenas  o  pavor  da certeza  de  morrer.   O  vento  gritava  e  assobiava  chocando-se  com  a  estrutura externa  da  espaçonave.  Estremecia  intensamente,  parecia  que  a qualquer  momento  se  partiria  em  mil  fragmentos  e  que  todos  seriam lançados  para  os  ares.  A  queda  ficou  tão  rápida  que  começaram  se desprender  do  piso  da  nave.  O  pânico  se  espalhou. –  Os pára-quedas!  –  gritou  Igórum.  Mas  meia  dúzia  de  oficiais já  estavam  tentando  isso. A  nave  desacelerou  bruscamente.  Várias  pessoas  caíram. Estalos  da  nave  se  quebrando.  Rachaduras  já  apareciam.  A  nave envergou  no  meio.  Todos  esperavam  que  se  partisse  a  qualquer momento.  Enfim,  estrondos  longos  e  graves,  e  então  um  forte impacto  que  derrubou  todos.   Levantando-se,  Igórum  percebeu  que  ainda  estava  vivo.  Quase todos  em  volta  já  se  levantavam. –  Dispensem  a  avaliação  de  danos  da  nave  –  falou  o  capitão, se  recompondo. Aterrissaram  no  meio  de  um  charco.  Era  o  que  podiam  ver pelas  janelas.  Não  viam  animal  algum.  Haviam  fugido  assustados. Pane  geral  nos  sistemas  elétricos,  positrônicos  e  quânticos. Nenhum  instrumento  baseado  nesses  sistemas  funcionava.  Tinham que  sair.  Precisavam  sair.  Nada  lhes  restava,  senão  a  vida  e  as  armas.   Após  dois  anos  confinados  na  espaçonave,  a  chegada  a qualquer  lugar  deveria  ser  uma  vitória.  Foi  estranho.  Sentiam-se estranhos.  Sabiam  que  naquele  momento  deveriam  estar  vibrando com  o  sucesso  da  viagem.  Mas  ninguém  comemorou.  Nenhum aplauso,  nenhum  sorriso.  Um  abraço  pesaroso  aqui  e  ali,  talvez.  E sabiam  que  era  estranho.  Estavam  frustrados  pela  própria indiferença.  Compreendiam  que  era  anormal.  Alguns  tinham desejado  ter  morrido  na  queda.   Igórum  ordenou  a  abertura  manual  do  portão  principal  da nave.  O  portão  começou  a  abrir  com  estalos  fortes,  tão  fortes  que sacudiam  seus  trapos.  Então  emperrou  na  metade.  Cresmir  tentou ver  o  que  travara  a  abertura  através  da  brecha  que  foi  aberta.   –  Estamos  a  uns  dois  metros  do  solo,  um  tronco  de  árvore obstruiu  a  abertura  do  portão  –  falou  Cresmir. –  Duran!  Desce  lá  e  corta  isso  –  mandou  Igórum.  –  Outro  vai com  ele. –  Marauá!  –  chamou  um  oficial. Os  dois  homens  foram  ao  portão,  magros,  mas  firmes. Despojaram-se  da  armadura  e  das  armas,  mas  mantiveram  a  couraça. Atravessaram  pelas  frestas  dos  dois  lados,  agarraram-se  em  alças  nos pés  da  nave  e,  tomando  coragem,  saltaram  no  solo  coberto  de  água. Jogaram-lhes  um  machado  e  uma  espada.   Duran  olhava  em  volta  alerta,  avaliando  o  perigo.  Marauá  não: olhava  admirado  para  o  céu  verde.  Nunca  vira  um  céu  verde.  Finas nuvens  riscavam  o  céu,  bem  altas,  quase  paradas.  O  Sol  de  Uquir brilhava  atrás  de  uma  bruma.  O  ar  húmido  e  quente  grudou  neles como  um  véu  encharcado  de  saliva.  Sentiam  cheiro  de  chuva,  mas não chovia. Uma  sombra  passou  sobre  eles.  Num  reflexo,  viraram  a cabeça  rapidamente  para  cima,  assustados.  Era  uma  silenciosa revoada  de  pássaros  de  penugem  verde-cinzenta  a  passar  não  muito alto. –  Há  pássaros!  –  gritou  Marauá,  atento,  olhando  em  volta enquanto  o  outro  preparava  uma  machadada  para  livrar  o  portão  da espaçonave. –  Psiu!  –  fez-lhe  Duran,  lançando-lhe  um  olhar  furioso.  Mas mal  ele  fez  essa  advertência,  o  mesmo  oficial  que  lhes  jogara  as  armas gritou  de  cima: –  Tende  cuidado!  Até  a  água  pode  ser  tóxica. Duran  balançou  a  cabeça  frustrado.   Marauá  se  afastou  a  vigiar.  Duran  jogou  não  muito  forte  a lâmina  do  machado  contra  o  tronco.  Era  de  madeira  muito  dura.  Ele aumentou  a  força  e  após  várias  machadadas  firmes  tinha  cortado poucas  lascas.  Marauá  foi  até  ele.  E  para  provar  da  solidez  da  árvore, tocou-a  com  a  ponta  da  espada,  mas,  para  seu  assombro,  ela penetrou  no  tronco  quase  sem  resistência,  como  se  cortasse manteiga.  Enterrou  a  lâmina  até  o  punho  da  espada  tronco  adentro. Ele  tocou  com  a  ponta do  dedo na  madeira  e  sentiu  ela  maciça,  como qualquer  árvore  de  Es-Abarre.   –  Duran,  vê.
Duran  continuava  a  golpear  com  o  machado  pelo  outro  lado da  árvore. –  Vê!   Ele  puxou  Duran,  mostrando  a  espada  se  enterrando  com pouca  aplicação  de  sua  força.  Duran  se  impressionou  e  pegou  a espada.  Movimentou  com  pouca  resistência  para  os  lados  e  percebeu que  facilmente  poderia  cortá-la  inteira.   –  Tenta  o  machado  –  Duran  disse  lhe  entregando. Ele  lançou  o  machado  com  pouca  força,  temendo  que  o  metal se  enterrasse  muito  na  madeira.  Porém,  apenas  o  impacto  seco. –  Toca  no  metal  do  machado  –  sugeriu  Duran.   Com  a  força  que  ele  fez,  o  machado  enterrou-se  na  madeira, tal  que  não  penetrou  completamente  por causa  do  cabo,  que  chocouse  contra  o  tronco,  ficando  do  lado  externo  a  árvore.   Sem  perder  mais  tempo,  Duran  com  um  golpe  da  espada cortou  todo  o  tronco.  Ela  caiu  e  tombou  a  copa  e  ramos  contra  os galhos  das  outras  árvores,  ficando  inclinada.  Duran  foi  até  a  metade do  tronco  e o cortou ao meio. As toras desabaram  à terra  encharcada, num  baque  abafado  pelos  arbustos  que  cresciam  da  terra  submersa. O portão ficou desobstruído. Subiu um olor de seiva.  –  O que  fizestes?  De  repente  a  árvore  caiu...  e  não  ouvimos os  golpes  do  machado  –  disse  aquele  oficial. –  Foi  incrível,  senhor  Naen.  O  metal  em  contato  com  nossa mão  cortou  a  árvore  como  uma  mão  corta  água  –  falou  Marauá. –  Tanto  a  espada  quanto  o  machado? –  Sim,  com  os  dois,  em  contato  direto  com  o  metal,  teve  essa propriedade  –  respondeu  Duran. –  Vistes  algum  animal  além  dos  pássaros?
–  Não,  senhor  –  respondeu  Duran.  –  Mas  ouvi.  Não  consegui identificar  o  que  eram.  Sugiro  extrema  cautela.  Há  animais  grandes  à espreita. –  Muito  bem  –  disse  Igórum.  –  Voltai  a  vossos  postos.  – Desçamos  –  disse  ele  aos  oficiais. –  Quem  serão  os  batedores?  –  perguntou  o  seu  filho,  o comandante  Simbin. –  Eu quero  ir  –  respondeu  Igórum,  decidido. –  Mas  Duran  alertou  claramente...  –  lembrou-lhe  Cresmir. –  Sim  –  falou  Igórum  franzindo  o  cenho  –  ele  é  perito  na floresta,  eu  sei.  Por  isso  não  quero  enviar  outra  pessoa.  A  nave quebrou...  não  sou  mais  importante  que  ninguém  agora,  só  dou ordens.  Eu  tenho  que  ir.  Só  assim  ficarei  satisfeito.   Alguns  deles  continuavam  a  não  concordar. –  Desçamos  –  insistiu  Igórum.  –  Ou  vou  só. Acho  que  Igórum  não  queria  que  o  perigo  acabasse.  Como  se quisesse  ali  perseguir  o  mal  que  lhe  perseguia.  Ficar  cara  a  cara  com ele;  e  não  de  costas, ou  de  lado,  ou  separado  por  paredes  de  concreto. Estava  cansado  de  fugir,  de  atenuar,  aliviar,  mascarar...  Queria  pisar naquele  solo,  como  quem  pisa  a  materialização  do  medo.  Estava exausto  de  ser  cauteloso.  Tão  exausto  que  começara  a  se  questionar se  não  era  um  covarde.  Quando  ouviu  as  machadadas  de Duran,  teve inveja.   Igórum,  Cresmir  e  Naen  desceram  até  a  água.  Logo  suas  botas estavam  encharcadas  na  água  rasa,  e  caminhavam  devagar,  evitando muito  ruído.  Igórum  ia  na  frente.  A  água  entrava  e  fluía  entre  seus dedos  e  planta  do  pé  a  cada  pisada  dentro  de  suas  botas.  Ficou pesado  puxar  os  pés  e  avançar  as  pernas.  Viram  as  copas  de  árvores a  frente  mexerem.  
Pararam  completamente. Igórum  observou  muito  atento  aquelas  árvores,  e  o  que  podia avistar  além  delas.  Apanhou  uma  pedra  e  atirou  com  força  para  o alto  a  uma  longa  distância,  que  chegou  próximo  a  elas.  Ouviram  a pedra  cair  entre  as  folhas  e  bater  na  água.  Nada  mais  aconteceu. A cada  dez  metros,  Igórum  dava  sinal  para  cem  dos  tripulantes descerem  em  formação.  Portavam-se  como  soldados,  e  entendiam que  naquele  momento  era  assim.  Os  três  adiantavam-se  mais  e  mais dentro  da  mata,  a  ponto  dos  da  nave  já  não  os  enxergarem.   Igórum  escutou  algo  se  mover  sobre  os  galhos. –  Ouvistes  isso?  –  perguntou  alarmado.   Naen  e  Cresmir  fizeram  que  sim.  Caiu  bem  à  frente  deles  um corpo  robusto  e  escuro,  sobre  a  água,  espalhando  e  respingando  em seus  rostos.  Deram  um  pulo  para  trás;  a  criatura  ficou  de  quatro.  Era um  raco.  Sua  aparência  muito  intimidou  Cresmir.  A  criatura  possuía grandes  olhos  negros,  seu  corpo  era  coberto  de  espessas  escamas  das quais  se  projetavam  agulhas  agudas.  O  raco  levantou-se  sobre  as patas  traseiras,  ficando  estranhamente  ereto  e  um  pouco  mais  baixo que  Cresmir.  O  peito  do  pé  e  o  os  dedos  o  sustentavam,  mas  seus calcanhares  não  tocavam  o  chão  e  o  joelho  estava  semi-fletido.  Os braços  longos  e  firmes  com  fortes  garras  afiadas  e  lustrosas  eram ameaçadores.   Impossível  dizer  quem  estava  mais  tenso.  Cada  agulha  do  raco vibrava.  Igórum  estava  todo  contraído.  Cresmir  apertava  firmemente o  cabo  da  espada.  Naen  ofegava. Igórum  se  moveu  devagar  até  a  fera.  O  raco  piscou  os  olhos. Cresmir  viu  malícia  neles.  Ouviram  ruídos.  Cresmir  sacou  a  espada subitamente  e  já  ia  desferir  um  golpe,  mas  pouco  antes,  como  se fosse  no  mesmo  instante,  fora  atingido  por  uma  fina  lança,  cuja ponta  se  cravou  em  seu  ombro  direito.  Igórum  e  Naen  só  tiveram tempo  de  ouvir  um  rápido  corte  do  ar.  Cresmir  gritou  e  caiu  na  água.   –  Em  guarda!  –  Igórum  ordenou  para  que  os  guerreiros ouvissem. O raco  alarmou-se  e  saltou  sobre  Igórum.  Naen  interceptou  a fera  no  ar,  partindo-a  ao  meio.  Igórum  (que  tinha  se  esquivado) olhou  assombrado  para  as  duas  metades  de  carne  vertendo  o  sangue roxo,  tingindo  a  água.  Vários  outros  racoé  se  aproximaram,  correndo de  quatro  entre  as  raízes.  Os  olhos  negros  brilhavam. Então  viram  outra  espécie  de  animal  se  aproximando  em bandos.  Enormes  corpos  eretos  e  peludos  de  pescoço  muito  largo, quase  contíguos  com  os  ombros  saiam  detrás  das  árvores:  os nubdaié.   Os  soldados  se  organizaram  se  dispondo  em  círculos contornando  a  nave.  Outro  flanco  seguia  rapidamente  a  onde  eles estariam.  Os  três  recuavam  cautelosamente,  de  espada  erguida. Cresmir  tinha  retirado  a  lança  com  o  braço  esquerdo.  Uma  tropa chegou  até  eles.   O ataque  começou  por  todos  os  lados.  As  espadas  começaram a  cortar  o  ar  e  a  carne  dos  racoé,  como  se  fosse  a  mesma  coisa.  Todo o  exército  estava  sendo  atacado  e  ouvia-se  por  toda  parte  o  som  de corpos  tombando  nas  águas.  Os  passos  dos  nubdaié  retumbavam. Ginchos,  berros,  urros.  O  solo  estremecia.  Milhares  de  nubdaié saiam  das  matas  segurando  toras,  as  quais  usavam  como  clavas  ou lanças.  Os  racoé  corriam  e  saltavam  de  cima  das  árvores.  Esabarrearaé  defendiam  a  nave,  exaustos.  Se  não  fosse  pela  interação deles  com  o  metal  no  Traud-Rópi,  teriam  morrido  no  primeiro minuto.
Alguns  estavam  com  tanta  sede  e  fome  que  beberam  da  água tinta  de  sangue.  E  nesse  momento  breve  de  desatenção,  eram mortos. Após  uma  hora,  milhares  de  nubdaié  e  racoé  tinham  morrido e  seus  corpos  se  amontoavam,  cobrindo  todo  o  charco  de  sangue  e carne.  O  odor  impregnou  o  ar  húmido.  Era  difícil  respirar  aquele  ar espesso.  Mas  os  es-abarrearaé  pareciam  imortais.  As  feras  já engajavam  no  combate  assustadas. Entretanto,  não  obstante  o  incontável  número  de  feras  que  já tinham  sido  mortas,  da  floresta  continuavam  a  surgir.  Tantos!  Alguns es-abarrearaé  desistiam  e  se  entregavam  para  a  morte  rápida.  Num suicídio  violento.  Mas  seus  berros  de  dor  mostravam  claramente  que se  arrependiam  dessa  decisão  sem  retorno.  Berros  que  instilavam mais  um  suspiro  de  determinação  nos  es-abarrearaé  que  ouviam.   Foi  desse  jeito  que  a  batalha  durou.  E  durou  muito!  O  dia escurecia  e  já  um  décimo  dos  gaussoctir  havia  perecido.  Não imaginavam  que  também  um décimo  da  população  de todo  o mundo dos  racoé  e  nubdaié  havia  morrido  ali,  igualmente.  Não  havia  um tripulante  na  nave  que  fosse  capaz  de  segurar  uma  espada  que  não estivesse  banhado  de  sangue  da  cabeça  aos  pés.  Já  não  havia  água  no charco.  Andavam  sobre  os  corpos  e  poças  de  sangue. O Sol  azulado  de  Uquir  brilhava  opaco,  relutante,  e  começou a  se  esconder  atrás  das  árvores.  Só  um  assistia  a  tudo  pelas  janelas  da espaçonave.  Apoeno,  o  único  ancião  entre  eles.  Via  horrorizado  toda esta  cena  de  carnificina.  Não  que  nunca  tivesse  presenciado  tal,  pelo contrário.  Por  ser  um  cientista  tão  importante  sempre  esteve  por  trás de  todos  os  conflitos  ao  longo  de  seus  dois  mil  e  quinhentos  anos, desenhando  armas,  calculando  estatísticas,  desenvolvendo estratégias.  Participara  de  guerras  de  maiores  magnitudes.  Mas haviam  acabado  de  aterrissar,  após  dois  anos  de  dúvidas  e sofrimentos  no  interespaço,  tendo  escapado  da  Querela  de  EsAbarre.  E  já  estavam  ali,  derramando  sangue  outra  vez.  Será  que  os es-abarrearaé  estavam  fadados  a  serem  os  sangradores  de  Idi?  Ele desviou  os  olhos  da  batalha  neste  pensamento  e  olhou  para  o  Sol  de Uquir.  Teve  a  impressão  daquela  janela  por  onde  observava  a  batalha que  o  Sol  de  Uquir  morria.  Um  gelo  se  espalhou  pelo  seu  ventre  e sentiu  uma  forte  opressão  no  peito.  Era  a  compreendsão  de  que  se fosse  assim,  isto  é,  se  não  fosse  apenas  impressão,  mas  que  se  fosse isso  mesmo,  que o  So lde Uquir  estivesse  se  apagando,  aquela  batalha não  importava...  Dando  as  costas  à  janela,  foi  ao  seu  alojamento, aos  seus  instrumentos  astronômicos  e  imergiu  em  cálculos  enquanto os  guerreiros  imergiam  em  sangue.   Lá  fora  no  charco,  nuvens  começaram  a  se  juntar  no  céu  sobre eles.  Começou  a  chover  forte.  Som  da  chuva  era  mesclado  com  o  da batalha,  e  até  abafavam  muitos  gritos  de  dor.  Embora  o  odor  férreo de  sangue  baixasse,  o  rabujo  podre  não  se  dissipou.  As  copas  das árvores  não  podiam  ser  vistas,  tão  densa  a  chuva.   Igórum  à  frente  dos  soldados  escutou  o  grito  grave  e  forte, distante,  vindo  de  além  do  campo  de  batalha:  "Dumbaréri".  Ele olhou  para  onde  vinha  o  som,  e  escutou  novamente  o  grito. "Dumbaréri".  Isto  significava,  em  ibimarain,  "líder".  Naen  estava próximo  e  ouviu  também. –  Capitão,  aguça  os  ouvidos.  Eu  acho  que  ouvi  uma  fera gritar"dumbaréri". "Dumbareri",  líder,  em  ibimarain.  Então  eles  ouviram  no idioma  de  Ibimará  a  fera  gritar  "Líder,  eu  não  faço  mal.  Quero  falar. Quero  fazer  trato.  Sou  líder".  Naen  chamou  Cresmir  e  caminharam os  três  até  onde  a  voz  vinha,  abrindo  caminho  matando  qualquer fera  que  aparecesse  na  frente.   Viram  após  umas  árvores  e  arbustos  uma  rocha  mais  alta  que um  nubdai,  da  largura  de  uma  pequena  casa.  De  ambos  os  lados vinham  feras  para  a  batalha,  mas  na  frente  e  no  meio  da  rocha,  três racoé  estavam  parados  quase  encostados  nela.  Um  deles  era  o  que gritara  e  acenou  chamando. –  Dizei  o  que  quereis  antes  de  morrer  –  ameaçou  Cresmir. –  Falar,  líder.  Quer  perder  a  briga?  Homem  está  perder  briga, e  cansado,  tudo  morte,  homem,  raco,  nubdai.  Só  tempo. O raco  falava  ereto  tendo  as  mãos  de  garras  uma  sobre  a  outra frente  as  coxas,  com  os  braços  abaixados.  Apesar  de  a  fera  não dominar  bem  o  idioma,  o  que  eles  ouviram  era  o  suficiente.  Cresmir iria  matá-los,  mas  Igórum  o  impediu.   –  Diz  –  disse  Igórum  ao  raco  –,  fala  tudo  agora.  Por  que  nos atacais?  Nada  vos  fizemos. –  Homem  não  é  Uquir.  Raco  pensa  homem  Uquir  e  começar luta.  Erro.  Homem  não  para  luta,  raco  não  para  luta.  Nós  quer  morte os  nubdai,  eles  é  mau  com  nós.  Nós  pode viver  tudo  aqui,  em  TraudRópi  sem  nubdai. –  Posso  matar-te  facilmente,  como  posso  saber  se  falas  a verdade?  –  perguntou. –  Pode  morte,  e  tudo,  raco,  homem,  nubdai  morte.    Raco  e homem  vive  em  Traud-Rópi,  morte  só  nubdai.  Raco  com  homem morte  nubdai  aqui.  Briga  fim.  Homem  novo,  raco  velho  em  TraudRópi.  Raco  mostra  Traud-Rópi,  homem  mata  nubdai.  Mata  Uquir. Raco  e  homem  morte  nubdai  aqui.  Não  trato,  tudo  morte.  Tem muito  raco  e  nubdai  vem  de  árvores.
Igórum  olhava  para  eles,  pensando.  Cresmir  já  estava  resolvido a  em  fechar  o  acordo.  Não  que  imaginasse  os  racoé  como  aliados... Rapidamente  se  formou  em  sua  mente:  assim  que  estivessem estabelecidos,  continuariam  e  exterminariam  qualquer  espécie  de feras  que  lhes  ameaçasse  a  segurança  naquela  lua.   Os  três  racoé  esperavam  a  resposta.  A  batalha  continuava. Igórum  olhou  aqueles  três  líderes...  tal  como  eles.  Este  detalhe  lhe tocou.  Certamente  era  proposital.  Enfim  Igórum  se  deu  conta  e aceitou  que  aquelas  criaturas  não  eram  animais,  ou  "feras".  Eram duas  espécies  diferentes  de  iacoir,  uma  que  não  fora  gerada  pelos  três Mundos  Primordiais.  Igórum  quis  interromper  a  batalha imediatamente,  já  estava  decidido  (mas  permanecia  calado  entre Naen  e  Cresmir,  mergulhado  nessas  reflexões).  Naen  acordou Igórum:   –  É  a  única  maneira.  Se  não  o  fizermos,  morreremos  –  disse em  um  dialeto  es-abarrein,  que  os  racoé  nada  entendiam,  por  isso escutaram  desconfiados.  –  E  se  estas  feras  nos  traírem  depois,  será mais  fácil  abatê-las  sem  os  nubdaié. Cresmir  não  quis  entender  nada  do  raciocínio  de  Naen. Somente  ouviu  que  ele  concordava  e  falou: –  Naen  está  certo,  Capitão. Viram  naquele  momento  os  nubdaié  passando  para  a  batalha carregando  pesadas  toras  das  mãos.  Usaram-nas  como  maças. Quando  os  soldados  viram  esta  tropa  tremeram,  e  muitos  sem  saber como lutar  baixaram  a  guarda  e  caíram.  Outros  golpearam  a  madeira, mas  a  parte  solta  caía  sobre  eles,  esmagando-os.  Também  havia alguns  que  tentavam  esquivar-se  dos  lentos  golpes  de  tronco  dos nubdai,  mas  com  essa  perda  de  tempo,  racoé  agarravam-se  neles  e os  matavam.  Não  havia  pensamento,  não  havia  defesa.  No  círculoque  eles  formavam  mais  próximo  da  nave  havia  poucas  feras,  mas  os nubdaié  de  longe  lançavam  pedras  contra  eles;  apesar  de  os  esabarrearaé  poderem  cortá-las,  eram  grandes  e  pesadas,  além  de  virem velozmente  do  alto,  tal  que  ainda  divididas  ao  meio  os  fragmentos os  fulminavam.  Muitas  pedras  atingiam  a  nave,  porém  apenas  sua fuselagem  se  amassava.  Terrível  era  o  estrondo  produzido  do  lado de  dentro.  Os  tripulantes  lá  dentro  (a  maioria  feridos  sem  condições de  retornar  a  lutar)  esperavam  que  a  qualquer  momento  entrassem feras  e  acabassem  de  vez  com  eles.  Milhares  de  es-abarrearaé estavam  morrendo  naquela  investida  dos  nubdaié.   –  Tempo  é  morte  –  falou  o  raco.   Igórum,  meio  àquele  grande  tumulto,  não  quis  pensar  mais  e nem  tinha  disposição  e  ânimo.  Debaixo  de  chuva,  Igórum  falou: –  Estamos  de  acordo. –  Falar  com  seus  líder.  Falar  com  meus  líder. "Racoé  aliados,  lutarão  conosco!"  Cresmir  recuou  com  Naen  e repetiu  a  mensagem  aos  capitães.  E  se  repetiu  nas  bocas  dos  outros como  eco,  até  chegar  a  todos  o  aviso.  Os  dois  racoé  saíram  gritando em  um  idioma  gutural,  saltando  entre  as  árvores  como  se  fossem panteras.  Suas  palavras  foram  seguidas  de  milhares  de  racoé  em rápida  marcha  vindo  da  floresta,  como  se  estivessem  aguardando  o comando.  Eles  pulavam  três  a  três  nas  costas  dos  nubdaié  e  os matavam  numa  fúria  inacreditável,  cravando  repetidas  vezes  suas garras  profundamente  na  carne  dos  gigantes,  com  uma  ira  acesa.   Em  Idi  falavam  "feras  de  guerra",  referindo-se  a  um  animal selvagem  usado  pelos  uquiraraé  nas  batalhas.  Eram  os  racoé.  Jamais pensavam  que  tais  bestas  eram  iacoir.  Já  os  nubdaié,  nem  o  Império ousava  escravizar.  Nem  menção  a  esta  espécie  se  fazia  por  toda  a galáxia.  E  ambas  eram  originadas  dali,  desta  terceira  lua  de Ganimede.  Provavelmente  uma  guerra  entre  raco  e  nubdai  ambos  se exterminariam.  E  de  fato  essa  guerra  nunca  acontecera  no  TraudRópi  por  as  partes  temerem  isso. Quando  a  chuva  sobre  o  charco  principiava  a  estiar  e  já  era noite,  não  mais  saiam  nubdaié  dentre  as  árvores  e  o  último  no  campo foi  finalmente  abatido.  Um  es-abarreara  desferiu  o  último  golpe daquele dia. Um crematório.   Um crematório  tal  como  foi  feito  em  Es-Abarre,  que  incinerou os  mortos  na  Última  Guerra  das  Dinastias.  Amontoaram  terra  no  pé da  rocha  onde  foi  feito  o  acordo.  Lá  puseram  fogo  em  madeira  e óleo;  quando  ardia  como  fornalha,  começaram  a  lançar  os  corpos encharcados  de  água  e  sangue. Enquanto  o  charco  era  limpo,  os  racoé  e  uma  parte  do  exército dos  es-abarrearaé  comandada  por  Simbin  foi  para  o  Vale  dos Nubdai,  pois  os  racoé  queriam  exterminar  toda  aquela  raça.  Cresmir os  acompanhou  a  fim  de  observá-los.  Somente  dois  dias  depois,  ao entardecer  aquele  exército  retornou.  Haviam  exterminado  todos  os nubdaié  do  Vale,  os  velhos,  fêmeas  e  filhotes.   –  Havia  uma  espécie  de  cidade,  dividida  em  imensas  aldeias  de tribos  no  mais  amplo  vale  que  já  vi  –  disse  Cresmir  a  Igórum, Apoeno  e  Naen  –,  invadimos  outras  aldeias  dispersas.  Encontramos milhões  deles.  Estavam  desprevenidos  e  nós  os  destruímos.  Só restaram  cerca  de  quatro  tribo  deles,  que  os  racoé  disseram  habitar nas  montanhas  e  do  outro  lado  deste  mundo.   –  Nossos  homens estavam  exaustos  e  famintos  –  disse  Simbin. –  Mas  pude  verificar  em  nossa  marcha  que  este  satélite  é  muitopequeno,  como  o  Senhor  Apoeno  disse.  Acho  que  em  uns  oitenta dias  em  passo  reto  poderia  ser  contornado  no  diâmetro  maior. –  E o que ficou  decidido  com  os  racoé?  –  Naen  quis  saber. Um raco  estava  próximo  e,  ao  que  parece,  compreendeu  o  que Naen  perguntava.  Ele  chamou  um  outro,  o  mesmo  que  propusera  o Motiron.   –  Tem  muito  nubdai.  Montanhas  e  longe-longe.  Raco  casa  em Traud-Rópi.  Homem  casa  em  Traud-Rópi.  Raco  com  homem  morte nubdai  sempre,  caçar  nubdai. –  Não  devemos  exterminá-los  –  disse  Apoeno  no  dialeto desconhecido  aos  racoé.  –  Agora  que  estão  reduzidos  não  vejo  ser necessário.  E  talvez  um  dia  poderão  ser  úteis  aliados. –  Não sei  se  serão  boas  as  conseqüências  de  deixá-los  vagando por  este  mundo,  enquanto  tentamos  nos  estabelecer  aqui  –  falou Simbin.   Igórum  estava  pesaroso. –  Idi  inteira  não  faz  ideia...  Eles  são  de  mente  expansível.  São iacoir! –  E por  isso  serão  sempre  um  perigo  para  nós  –  argumentou Cresmir.  –  Se  animais  não  se  vingam,  iacoir  sim!  Es-Abarre  é  muito maior  que  este  mundo,  e  apenas  uma  espécie  de  iacoir  andava  lá. Aqui  são  três...  numa  lua.  Eles  serão  sempre  uma  ameaça;  não podemos  deixá-los  se  multiplicarem  nas  montanhas. –  Serão  ameaça  se  também  o  formos  para  eles  –  argumentou Naen.   –  Deixemos  os  racoé  cuidarem  de  seus  inimigos  –  falou Simbin.  –  Agora,  se  eles  quiserem,  estão  em  maior  quantidade  para isso. Cresmir  preferiu  não  falar  mais.  Era  muito  óbvio  para  ele. –  Será  feito  assim  –  disse  Igórum  em  ibimarain  para  o  raco.  – Não  iremos  atrás  dos  nubdaié.  Se  eles  vierem  contra  nós  ou  contra vós,  lutaremos  juntos  de  novo. –  Não  bom  trato.  Nós  não  fazer  nada  para  homem,  bom  e mau.  Não  falo  nada  para  raco.  Eles  fazer  o  que  quer,  bom  e  mau,  se homem  não  vai  com  nós  morte  nubdai. Cresmir  deu  um  sorriso  cético  para  Igórum,  querendo  lhe alertar. –  Poderíamos  aprisionar  os  nubdaié  –  Igórum  falou,  querendo saber  o  que  seus  conselheiros  achavam. –  Uma  prisão,  senhor?  Outra  prisão  para  encher  de  ódio?    – sussurrou  Apoeno. Igórum  finalmente  concluiu:   –  Será  assim  –  confirmando  o  que  dissera  antes,  falando  para o  raco.  –  Aqueles  racoé  que  quiserem  nos  atacar,  contra  eles lutaremos.  Aqueles  que  quiserem  ser  amigos,  assim  serão.  Bem como  os  nubdaié.  Caso  eles  vos  ataquem,  então  lutaremos. O  raco  demonstrou  estar  muito  contrariado,  pôs-se  sobre  as quatro  patas  e  retirou-se  com  seu  bando  dando-lhes  as  costas  sem mais palavra. Milhares  de  feridos  eram  tratados  naquelas  obscuras  e prolongadas  noites.  Os  es-abarrearaé  se  abrigavam  na  nave arruinada.  Eles  encontraram  uma  planície  não  muito  distante  do Charco,  e  lá  iniciavam  a  construção  de  casas  de  madeira. Nas  madrugadas,  ouviam  o  som  distante  de  batuques compassados  e  nauseantes  que  as  feras  tocavam  de  suas  habitações ainda  mais  longínquas  a  se  misturar  com  o  som  da  chuva  fina  que retornava  sempre  que  era  noite.  Dias  de  muito  trabalho  se  seguiram, para  construir  casas,  tratar  dos  enfermos,  colher  frutas  e  caçar animais.   Após  duas  ou  três  semanas,  várias  casas  tinham  sido  edificadas e  mais  da  metade  da  tripulação  já  habitava  nelas.  Num  perímetro próximo  crescia  uma  vegetação  baixa.  Ali  verificaram  que  o  solo,  se devidamente  cuidado,  seria  bom  para  o  cultivo  de  grãos;  além  disso, apareceram  uns  racoé  que  viram  os  es-abarrearaé  preparando  o  solo e  se  ofereceram  a  ajudar,  mostrando  onde  havia  nascentes  de  rios  e bons  adubos,  além  de  levar  a  eles  sementes  de  frutas  e  grãos  nativos.   Vários  racoé  resolveram  morar  com  eles.  Graças  a  eles,  os  esabarrearaé  tiveram  um  progresso  extraordinário.  Não  passaram grandes  necessidades.  Mas  a  vida  era  diferente.  Não  era  do  jeito  que queriam  que  fosse. Certo  dia,  uns  racoé  de  uma  raça  diferente  fizeram  tentativa  de invadir  o  arraial  para  saquear  e  matar.  E  por  terem  sido  confundidos com  os  racoé  do  arraial,  passaram  quase  despercebidos  e  foram  os próprios  racoé  que  lutaram  contra  eles  e  defenderam  os  esabarrearaé.  Num  destes  assaltos  os  racoé  do  araial  se  feriram  e  dois es-abarrearaé  foram  mortos.  Isto  levou  a  muitos  a  deixarem  crescer seu  temor  contra  qualquer  racoé. –  Eles  devem  ser  executados.  Jamais  deveríamos  ter  nos  aliado a  eles.  Pena  que  não  os  matamos  quando  podíamos  –  disse  Cresmir no  conselho  que  tiveram  para  cuidar  do  assunto. –  Se  não  tivéssemos  nos  aliado  não  sei  se  estaríamos  vivos. Estávamos  sendo  derrotados  pelos  nubdaié  –  falou  Simbin.  –  Eles são  muito  inteligentes,  mais  que  alguns  humanos  e  só  são  selvagens porque  o  querem  ser. –  Então  porque  os  chama  inteligentes?  –  disse  Naen. –  Disse  isto  porque  procurei  me  relacionar  com  eles,  até  tenho aprendido  seu  idioma.  Disseram-me  que  existem  diversas  tribos deles,  até  mesmo  rivais  e  lutam  entre  si.  Duas  tribos  inteiras  estão conosco  no  momento.  Eles  têm  nos  auxiliado  muito  e  estes  nada têm  a  ver  com  a  raça  dos  racoé  que  nos  assaltaram,  são  de  uma  tribo selvagem  próxima  das  montanhas.  Eu  já  reservei  parte  dos  homens para  guardar  os  limites  do  arraial,  com  ordem  de  abater  qualquer criatura  hostil  que  nele  adentrar.  E  como  prova  de  sua  fidelidade, metade  dos  racoé  que  estão  conosco  estão  guardando  nossas fronteiras.  Eles  podem  reconhecer  logo  quando  algum  raco  se aproximar  se  ele  é  de  uma  tribo  inimiga. –  Deves  ter  muita  cautela  nisto,  Simbin  –  falou  Apoeno.  – Acho  que  foram  atitudes  de  comando  muito  organizadas,  mas  deves ter  os  olhos  bem  abertos  e  diariamente  ouvir  teus  homens  de confiança  relatar  o  comportamento  destes  selvagens. –  Não  somos  a  espécie  dominante  no  Traud-Rópi...  –  falou Naen,  deixando  a  frase  sem  fim,  porque  para  ele,  bastava. –  Que  fique  assim  –  resolveu  Igórum.  –  Nenhum  raco  entrará em  nosso  território  sem  ser  reconhecido  e  alistado.  Não  permitas que  qualquer  um  dos  nossos  nem  deles  saiam  sem  saberes  o  que farão. –  Senhor,  se  não  tomarmos  atitudes  mais  duras  vamos  ser aniquilados  aos  poucos  –  reclamou  Cresmir. –  Talvez.  Vamos  aguardar.  Se  ocorrer  mais  algum  assalto  ou  se for  notado  algo  suspeito  neles,  fechar-nos-emos  aos  racoé  e ouviremos mais tuas opiniões sobre o assunto, Cresmir.

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