Destinados a morrer

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Seguiram-se dias de paz no arraial. Os racoé aliados trabalhavam muito. Estavam no meio da selva de Traud-Rópi, tentando formar uma ilha civilizada e segura. Não só racoé de outras tribos foram abatidos, mas outras bestas carnívoras e peçonhentas com seu auxílio. Os racoé eram até mais pacíficos que os es-abarrearaé, pois eles não contendiam entre si, como faziam alguns es-abarrearaé de temperamento instável. Até mesmo havia humanos que tinham se tornado amigos dos racoé. Mas havia uns que evitavam a todo custo aproximar-se das feras.

No segundo mês, era dia de céu claro, com Marcabe brilhando longe, não tão pequena como uma estrela e nem tão grande como uma lua. Ganimede queimava dourado, sua grande esfera parecia que cairia numa floresta distante. E o Sol de Uquir, num azul gelado, opaco. Indistintas e esparsas nuvens cinzentas no horizonte vagavam lentamente. Foi neste dia que se reuniram para fundar o Reino de Beacan e coroar Igórum Ogaussoc seu Rei.

Humanos e racoé se aglomeraram diante do maior edifício de madeira do arraial, o qual chamavam Castelo de Madeira. Havia dias preparavam esta primeira festa. Precisavam dela. Forçaram ela. Uns queriam apenas cantar, comer e beber com amigos; uns queriam apenas descansar e ouvir os barulhos dos outros se divertindo; outros tinham a necessidade de ver o reino formado e estabelecido, de se curvar para um rei. Esta era a maioria. Queriam ouvir alguma palavra que lhes animasse, que lhes desse a sensação de segurança, de que estavam progredindo, que eram vitoriosos e podiam comemorar. Viam em Igórum a pessoa que podia lhes dar isso. Faziam dele uma imagem utópica. Igórum não tinha o direito de estar também perdido... e isto o sufocava.

Ele era consciente de sua desorientação. Consciente das exigências que faziam dele. E nessa opressão, angustiava-se. Não que fosse um desorientado. Mas que as obrigações que lhe impunham lhe tiravam do eixo. Tanto que já nem sabia o que era. Só ele tinha conhecimento de seu transtorno, que se sentia desequilibrado, desajustado. Teve diversos pesadelos com a Beneroponte explodindo no vácuo. Algumas vezes acordou deles desapontado por ter sido apenas um sonho. Não imagineis que ele era um perdedor, passando por auto piedade. Não. Justamente por ser o oposto, não permitia que ninguém além dele soubesse que, para ele, todos ainda estavam vagando pelo interespaço, procurando... a caminho... perdidos. Sua aflição era mais a raiva austera que a melancolia do miserável. E quando Apoeno lhe revelou suas descobertas...

O Castelo de Madeira não estava completo, mas como eu vos expliquei, queriam inaugurá-lo. A madeira não fora trabalhada, e tudo lá ainda cheirava à seiva. Algumas estruturas estavam na tora bruta, ainda com casca. Mas o que foi construído foi feito para durar enquanto a madeira durasse. Os quartos do rei e sua família, o grande salão, o arsenal... o que fora erigido estava firme. Os milhares de habitantes de Arraial estavam lá, de frente ao Castelo de Madeira que eles mesmos construíram, conversando ansiosamente nas imediações da torre, que eles mesmos levantaram. Uma torre, mais alta que todo o edifício, mais alta que qualquer árvore de Traud-Rópi.

E enquanto conversavam todos, num grande barulho, vez ou outra alguém voltava os olhos para o alto da torre, para ver se o Capitão aparecia. E rapidamente os baixava enquanto prosseguia a conversa. Até que enfim alguém olhou e permaneceu olhando, calando a boca, num silêncio que se espalhou feito chama em pólvora.

Igórum levantou a mão acenando. Não estava vestido como engenheiro, nem como capitão... Igórum se perguntava se alguém percebia o desconforto dele naquelas vestes: calças de linho amarelo, camisa longa de seda azul e um manto de veludo verde arrastando ao chão. Como era quente! Por que não deixaram em Es-Abarre? O peso dos panos lhe restringia os movimentos. E o pior, diziam que ele era o rei deles... "O que fazer?" perguntava-se tão frequentemente que parecia que a pergunta era um eco constante em sua mente. O que fazer?! Olhou para aquele povo, lembrando de quão trabalhosos eles eram. Conflitantes, instáveis. Tinha um discurso pronto. Queria rasgar ele. Mas o que falaria? perguntava-se, com um gelo no peito. E sem saber o que fazer, continuou a fazer o que vinha fazendo... abaixou a mão, inspirou profundamente e começou a falar.

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⏰ Última atualização: Jan 29, 2017 ⏰

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