Havia uma menina especial na minha rua, não, ela não tinha o melhor cabelo: não era ruiva, nem loira, nem mesmo morena, possuía na verdade longos cabelos castanhos que quase nunca estavam soltos, geralmente estavam presos em um rabo de cavalo, era branquinha como se nunca tivesse visto o sol, mas toda manhã ela abria as janelas do quarto, sentia o calor em seu rosto, respirava fundo e dizia:
—É um novo dia!
Todos os dias íamos juntos a escola, foi ela quem me ensinou a andar de bicicleta, nossos vizinhos foram testemunhas de meus tombos, quem lembra ainda ri, porém as marcas que tenho daquele dia apenas me fazem sorrir, pois a cada tombo ela estava lá para estender a mão e me colocar de pé novamente, ela nunca me deixou desistir.
Por algum motivo ela andava na ponta dos pés, não só andava como também corria e pulava, talvez tentasse adquirir altura, ela nunca foi muito alta, ou talvez tenha se acostumado com as sapatilhas de ballet, ela sempre gostou de dançar, as vezes eu a flagrava rodopiando pelo quarto ouvindo uma de suas musicas clássicas, sua expressão era sempre fechada, mas sabia que com aquelas sapatilhas ela se divertia.
Ela me ensinou a fazer doces, com muito custo, mas aprendi bem, lembro de quando nos sujamos de farinha, ela riu tanto de nossos reflexos branquinhos no espelho que precisou de apoio para se manter de pé.
Ela era boa aluna, não a melhor, mas era boa, sua matéria favorita sempre foi historia, nunca vi alguém concentrada como ela, conhecia de tudo um pouco: Abraham Lincoln, Ameríndios, Hitler, família real para o Brasil, império de Napoleão, ela era sensacional, me impressionava a vendo responder as perguntas da professora. Ela não esquecia de nenhum detalhe. Acho que ela aprendeu bem com seus livros de Sherlock Holmes:
—Os pequenos detalhes são os mais importantes, eles podem mudar tudo.
Ela ficava doente facilmente, me lembro que diversas vezes ela deitava a cabeça na mesa da sala de aula e gemia para si mesma várias e várias vezes:
—Eu aguento.
Eu a visitava, ela morava a quatro casas de distância, sua casa era vermelha, o jardim sempre tinha cor: flores vermelhas, rosas, roxas, azuladas, alaranjadas e o que você conseguir imaginar, ela distribuía coroinhas de flores que ela mesma fazia com as flores mais belas que encontrava, eu a ajudava a encontrar, ela sempre me dava as mesmas instruções:
—As mais belas, as mais perfumadas, as mais coloridas e as mais enormes, essas são as que preciso, elas vão alegrar o dia de alguém.
Era impressionante a forma como ela conversava com todos, era sempre o mesmo tom calmo e paciente, até as coisas mais banais pareciam ser de extrema importância, não me admirava era ser a líder do grupo de debate e nem o fato de ela sempre separar as brigas com conversa.
Me lembro de nosso primeiro beijo, veio como brinde após uma de nossas pequenas discussões, não, nunca brigamos de forma séria:
—Delphis é um belo nome!
—Não, não é, já viu alguém com esse nome além de mim, Thomaz?
—Não, justamente por isso ele combina com você, não conheço nenhuma outra Delphis como você, pois não existe ninguém como você.
Ela quase nunca chorava, na verdade ela me consolava depois de ser jogado contra os armários, ela sempre estava lá quando me feriam tanto fisicamente quanto mentalmente:
—São pessoas pequenas querendo que você se sinta pequeno como elas, mas você é grande, Thomaz, grande como ninguém, mostre isso a elas.
Durante toda a minha vida pensei que ela não teria medo de nada: já a vi subir até o topo de árvores e se pendurar de cabeça para baixo em seus galhos, ela já foi em todas as montanhas-russas dos parques que visitamos, mostrava a língua para os tigres do zoológico, contava historias de terror com a lanterna apontada para o próprio rosto e nadava na parte funda da piscina do clube desde os três anos, porém não dormia sem seu fiel ursinho laranja a qual apelidou de Mel, pois tinha medo da solidão.
Delphis cantava, cantava qualquer musica que chamasse bem sua atenção, seja em português ou inglês...Bom, talvez seu inglês fosse um chinês...Com grego...Misturado ao latim...Com uma pitada de árabe...Porém ela sempre dizia:
—Quem canta os males espanta!
Delphis era a menina mais perfeita que já conheci...
E eu a perdi!
A perdi em um dia de chuva, eu nem estava por perto para impedir, em uma de suas escaladas atrás de uma manga madura o galho cedeu, a queda foi rápida, toda a rua ouviu seu grito...Ainda me lembro como a sirene na ambulância parecia assustadora...
Sua risada...Seu sorriso...Seus rodopios...Suas frases...Seus atos...Seu perfume...Tudo caiu por terra....Tudo caiu junto daquele galho...
O que me resta são as lágrimas de saudade...E a certeza de que minha pequena princesa foi cedo apenas para confirmar o que eu sempre soube:
DELPHIS ERA UM ANJO!
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O Amor conta um conto
Short StorySimples contos sobre o amor, sobre seus desfechos e seus inicios, seus desvios e suas metas. Contos sobre o amor que é para todos, sobre o amor que nos conta sua historia todos os dias, através de cada sentimento, vibração, lágrima e sorriso. ...