Prólogo

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Após uma pausa da escrita e um pouco de descanso, eu voltei a escrever. Essa história ainda está em andamento, mas já tenho alguns capítulos escritos para garantir postagens semanais, então resolvi começar a postar. 

Apesar desse prólogo ser meio triste, a história não vai ser toda assim, prometo. Mesmo quando eu tento fazer algo mais dramático não consigo fugir do humor.

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Prólogo

Quando eu era criança sempre tinha medo de que alguém roubasse os meus sapatos no cinema. Ficava encolhidinha, com os meus pés para cima da cadeira de couro vermelho, temendo que se eles ficassem junto ao chão, em meio à escuridão, alguém poderia levar meus sapatos. Por isso escolhia os feios, às vezes até os furados (com pequenos furos imperceptíveis, os com furos grandes a minha mãe jogava fora), para que ninguém se interessasse por eles. Mas não deixava de ir ao cinema com a minha mãe por isso. Até os dez anos era ela quem me levava. Depois, passei anos sem ir. A vida ficou complicada e momentos de felicidade e de lazer, como ir ao cinema, foram deixados de lado. Mas até hoje tenho trauma de ficar sem sapatos.

Só que me esqueci de deixar os pés para cima quando embarquei sozinha nesse ônibus no meio na noite. De novo a vida ficou confusa, e eu esqueci que cuidar dos meus sapatos. E deveria ter feito isso. Durante anos, após os meus dez, tive que me contentar com sapatos velhos e baratos. Agora finalmente tenho sapatos decentes, esse até era de marca, e além de caro era lindo. Meus sapatos refletem a minha vida, pelo menos acho que deveriam refletir. Porque na teoria sapatos bonitos deveriam refletir uma vida bonita e a minha vida não é assim há anos. E eu nem tinha me dado conta de que realmente não era feliz... Até o dia de hoje.

Antes minha mãe me comprava sapatos lindos, cor-de-rosa e com brilhos. Depois que ela morreu, meu pai parou de ligar para várias coisas, e eu também. Meus sapatos eram velhos e eu ficava satisfeita se eles não fossem furados e se servissem. Tal como aconteceu com o meu pai, eu parei de ligar. Até para os sapatos.

Levava um dia atrás do outro no modo automático. Levantava da cama, por insistência do meu pai, e ia para a escola. Meu pai me obrigava estudar. Na escola e fora dela. Ele não queria apenas notas boas, ele queria as melhores. E eu sabia que ele fazia isso pela minha mãe. Minha mãe largou os estudos quando ficou grávida, e depois porque passou anos cuidando de mim e da minha irmã caçula, que era três anos mais nova. E ela sempre dizia que isso não iria acontecer com nós duas. Que eu e a Josi iríamos concluir os estudos e depois faríamos uma faculdade, algo que nem minha mãe, nem meu pai, puderam fazer. Meu pai era mecânico, minha mãe dona de casa, e eu e a minha irmã estudávamos em uma escola pública.

Infelizmente, minha irmã também não pode concluir os estudos, então isso caberia a mim. Eu sabia que o meu pai voltava para a casa e para a cama dele após me levar para a escola, pelo menos nos primeiros dias após a nossa perda. Eu sabia que ele fazia isso, de me acordar e de me levar para a escola, com um esforço descomunal. E eu sabia que ele bebia assim que ficava sozinho em casa.

Eu sentia o cheiro de álcool nele, e na casa, e por vezes juntava e jogava fora as garrafas que ele escondia. Era eu quem, desde os onze anos, arrumava a casa e fazia a faxina. Era eu quem teve que aprender a cozinhar, errando várias vezes no início até pegar o jeito. Mas meu pai não ligava para os meus erros. Acho que ele comeria até a grama, caso eu a pegasse do nosso jardim, que nem era muito verde, e a temperasse com sal. Meu pai não ligava para nada, exceto para o meu estudo e para as minhas notas. E isso, mesmo que eu também me sentisse meio que flutuando e completamente antissocial agora, eu me afastei das minhas poucas amigas, também era o que me fazia continuar. Eu estudava.

Por um tempo foi assim. Só saindo de casa para ir a escola, estudar, cuidar da casa, cuidar do meu pai... Até que a dor ficou mais amena. Quando eu entrei na faculdade, era pública também já que não tínhamos muito dinheiro, a minha dor estava mais leve e eu já me sentia capaz de interagir com as pessoas. A minha reclusão fazia eu me sentir tímida, mas eu já conseguia retribuir sorrisos, pelo menos. E eu fiz uma grande amiga na faculdade, a Bruna, que é a minha melhor amiga até hoje.

Só que o meu pai não me deixava ir em festas, ou em casa de colegas. E eu, que temia que caso o contrariasse ele voltasse a beber, obedecia. Eu até tinha amigas, e amigos, na faculdade, mas fora dela não via ninguém. E eu continuava estudando.

Meu pai sempre disse que a minha vida melhoraria com o estudo. E eu acreditava nisso, porque tinha que acreditar. Já que tudo o que eu mais queria era voltar a ser feliz. E eu não sabia como fazer isso.

Meu pai quase não voltou a sorrir. Mas eu queria mais da minha vida. Queria sorrir de novo, pelo menos.

E agora, já formada e com 25 anos, eu não estou feliz. Era mentira. Terminei os estudos, sempre com notas excelentes, mas não encontrei a felicidade que eu buscava.

Agora, eu estou sozinha de novo. Em um ônibus rumo a uma cidade desconhecida, é a terceira vez que a vida se tornou difícil para mim, e roubaram os meus sapatos.


Sabor de liberdade (Degustação)Onde histórias criam vida. Descubra agora