O primeiro dia de aula (Hades)

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Como Oscar era um velho amigo do atual dono do colégio onde havia estudado não teve dificuldade em me conseguir uma bolsa. Claro que eu tive de fazer uma prova para testar meus conhecimentos, mas como pude gabaritar a prova sem qualquer dificuldade isso não foi um empecilho para que eu conseguisse minha bolsa de estudos.
Voltei para casa depois do teste, uma semana se passou e eu ainda continuava pensando sobre quem eu era, tentando vasculhar em minha mente uma lembrança por menor que seja, mas como em todas as outras vezes o esforço foi em vão. Por mais que forçasse minha mente não conseguia me lembrar de nada de antes de acordar naquele rio.
Frustrado e sinceramente decepcionado com a minha incapacidade de se lembrar das coisas me deixei cair no confortável sofá que ficava na sala de TV.
- Por que comigo? - Me queixei em voz alta. Obviamente ninguém respondeu, afinal a sala estava vazia.
Amanhã vai ser meu primeiro dia de aula e eu admito que estava um pouco ansioso. Já estava na hora de criar as memórias que me faltavam. Esse pensamento fez com que um sorriso leve surgisse em meus lábios, mesmo sem memórias ainda deve ser possível ser feliz afinal não me lembro de ter perdido nada importante.
Poderia ser pior. Eu até que tinha umas habilidades bem úteis, pensei. Nunca iria me machucar, não precisaria conhecer a dor. Eu também não dormia, não havia dormido nem sequer um dia desde que acordara do coma e mesmo assim não estava nem perto de me sentir sonolento. Muito pelo contrário me sentia sempre desperto e desde que acordei jamais senti qualquer fadiga. E para completar eu não como ou bebo água. Não sinto sede ou fome e a falta de comida e água não me afeta de forma alguma. Poderia ser pior, poderia ser muito pior. Depois de algum tempo apenas pensando nisso comecei a ficar um pouco entediado. Não importava o esforço que fizesse não conseguia me lembrar de nada, o mais estranho era que me lembrava de cada segundo de depois de acordar do coma, não esqueci de nada desde que acordei, nada mesmo.
Peguei o controle e liguei a TV. Estava passando um noticiário falando alguma bobagem sobre um imenso projeto conjunto das maiores empresas de tecnologia do mundo que iria mudar a vida de toda a população. Rapidamente apertei o botão do Netflix para poder assistir alguma coisa. Fiquei um tempo pensando antes de clicar para assistir um anime. Quando comecei a assistir essas produções japonesas descobri que era capaz de falar e compreender o idioma sem qualquer auxílio de legendas. O mesmo aconteceu com o inglês quando eu assisti uma série americana há quatro dias atrás, e quando tentei testar a minha capacidade de compreensão busquei textos em diversos idiomas na Internet. E para minha surpresa li sem dificuldade todos os idiomas que testei.
Me deixei relaxar no sofá enquanto assistia o programa, sem me preocupar com onde diabos eu havia aprendido a falar fluentemente mais de trinta idiomas diferentes.
Fiquei assistindo TV até que conseguisse ouvir alguma movimentação na casa que indicava que Leticia e Oscar estavam acordando, minha audição não era de se decepcionar, tanto que era capaz de ouvir os batimentos cardíacos dos meus dois pais adotivos. Certo, já é hora de sair do quarto pensei já me levantando do sofá e desligando a TV. Não podia me atrasar pro primeiro dia de aula desde que conseguia me lembrar.
Sai da sala e encontrei meus pais postiços tomando o café da manhã.
- Quer comer ou beber alguma coisa? - Oscar perguntou como fazia todas as manhãs.
- Nenhum pouco. - Disse dando a mesma resposta de sempre.
Ele sorriu alegremente.
- Não come, não dorme, não sangra e faz contas rápido. Resolvi o mistério você é um computador. - Ele disse brincando.
- Afirmativo. - Eu disse com a melhor imitação de voz robótica que consegui fazer que por sinal era péssima. - Programado para dominar o mundo. - Falei sorrindo enquanto me lembrava da Skynet do filme do Exterminador do futuro que eu tinha visto há cinco dias.
Leticia não participou da brincadeira. Desde o início ela levava com suspeita compreensível o fato de eu não comer, dormir ou me ferir. Em compensação Oscar apenas parecia achar que isso me tornava mais impressionante ao ponto de certa vez ter me dito que não comer ou dormir seria uma habilidade muito útil.
- As pessoas perdem muito tempo comendo e dormindo, mas você não precisa fazer isso. - Ele havia me dito. - Por isso você tem mais tempo que os outros, ninguém tem mais tempo do que você. Isso pode te ser muito útil um dia. - Havia terminado alegre.
Se não fosse por Oscar não sei como eu estaria agora. Provavelmente em um abrigo qualquer, pronto para estudar em uma escola pública que ainda era sucateada mesmo em pleno ano de 2028.
- Boa sorte na escola. - Disse Oscar me puxando para a realidade. - E lembre-se um gênio é 1% inspiração e 99% transpiração. - Falou o ditado que já tinha repetido para mim mais de uma vez.
- Entendido. - Falei confiante. - Acho que é melhor eu já ir descendo, quero chegar antes do escolar para ter certeza que não vou atrasar. - E também fugir do olhar desconfiado e analista da Leticia que já estava começando a me assustar, mas eu não podia dizer essa parte em voz alta.
Sai pela porta rapidamente e chamei o elevador que chegou poucos segundos depois. Entrei no elevador esperei até que ele parasse... Entre o oitavo e o nono andar completamente estragado.
Maldição. Por que diabos esse tipo de coisa só acontecia comigo? Como se não bastasse perder a memória a vida precisava colocar a cereja no bolo. Tentei usar o interfone de emergência do elevador, mas não estava funcionando melhor que o resto.
Fiquei esperando sem muito o que fazer até que o zelador do prédio veio para me libertar. Foi bem mais rápido do que eu esperava, mas a conta de eu ver o ônibus escolar saindo enquanto eu era deixado para trás.
Entrei em desespero e sai correndo igual um maluco atrás do veículo gritando desesperadamente para o motorista parar e me deixar entrar. Ele parou o escolar e me deixou subir.
Esperei a porta automática abrir para entrar e logo ouvi o comentário do homem.
- Você deveria entrar pras olimpíadas, nunca vi ninguém alcançar um escolar na corrida. Eu tava a cinquenta e você nem parece cansado. Essa droga desse velocímetro deve ter quebrado de novo. - Ele falou demonstrando uma admiração sincera e uma leve irritação com o mal funcionamento da máquina.
- Obrigado. - Eu disse tímido. Ao que parece a sensação de ter muitas pessoas te observando é extremamente desconfortável.
Passei pelo motorista procurando um lugar vago no escolar até que encontrei um ao lado de uma garota baixinha de cabelos negros. Ela usava um óculos escuros e tinha uma bengala apoiada no canto da poltrona. Conclui então o óbvio, ela era cega.
Os traços dela eram suaves e delicados assim como os lábios. Os seios eram pequenos assim como ela e a bem da verdade também era bastante magra. Não era exatamente o que a maioria chamaria de uma garota bonita.
Apesar disso uma torrente de pensamentos positivos por ela me tomou. Senti uma vontade imensa de me aproximar dela.
- Posso me sentar aqui? - Perguntei meio tímido. Algo nela me deixava sem chão, mas eu era incapaz de saber o que. Talvez se eu tivesse minhas memórias...
- Claro. - Ela respondeu. - Não é como se tivesse mais alguém querendo sentar ao meu lado. - Ela deu uma pequena risada com a meia-piada autodepreciativa. - Meu nome é Isabel Drumont, mas pode me chamar de Isa. E você, qual é seu nome? - Ela perguntou tentando iniciar uma conversa.
- Me chamam de Nicolas. O Oscar que escolheu. Não tenho sobrenome ainda. Mas ao que tudo indica devo ficar com o sobrenome dele também. - Falei já que não fazia ideia do meu verdadeiro nome.
- Como assim? - Ela perguntou confusa.
Eu conseguia me ver refletido nos óculos que ela usava, era uma armação escura com um par de lentes bem grandes. E eu tenho que admitir que ficava bem bonito nela e eu não podia dizer que não combinava com os olhos cinzentos dela. Talvez a maioria não pudesse ver a cor dos olhos dela através do óculos escuros ou mesmo ver que aqueles olhos eram incapazes de ver. Mas como minha visão era tão aguçada quanto minha audição conseguia ver tudo. Era uma visão bela. Os cabelos eram longos de modo que escorregavam bem abaixo do ombro. A pele era pálida, mas por algum motivo eu achava atraente e ela tinha cheiro de baunilha, tão suave que seria quase impossível de se detectar para uma pessoa normal.
- Não me lembro de nada. Perdi todas as memórias. Só me lembro de coisas que aconteceram depois de eu acordar na margem de um rio.
- Sério, você teve amnésia? - Ela parecia interessada. - Desculpe perguntar assim, não é da minha conta. - Ela emendou com vergonha.
- Tudo bem. Não tem problema. - Eu disse. - Não me lembro de ter esquecido nada importante. - Tentei lançar uma piada para tirar toda a tenção do tema.
Ela deu um sorrisinho leve que eu achei super fofo e eu admito que por um instante meu coração derreteu.
Ficamos conversando no ônibus até que ele chegou ao colégio. Foi uma conversa agradável e eu sentia que queria me tornar amigo da Isabel. Ambos saímos da van e fomos em direção a sala de aula.
E nos sentamos em cadeiras na parte da frente do extremo direito da sala. O professor estava demorando a chegar e nesse pequeno tempo de atraso descobri a mentalidade perversa de algumas pessoas daquela sala.
- Parece que tem um novato conversando com a Topeira, é o cara que correu atrás do ônibus. - Disse um garoto que parecia ser muito descolado sentado no extremo oposto da sala.
- É melhor ele correr mesmo, senão ela vai pro ataque. Você sabe que essa vadia dá em cima de qualquer um. - Completou outro que parecia ser o líder do grupo. - Pelo que falaram ele é bem rápido, será que joga bem? Se sim podemos colocar ele no time, que ele tem fôlego e velocidade já está claro.
Eu não conseguia acreditar no que estava ouvindo, como alguém poderia ser tão babaca ao ponto de falar assim de uma cega?
O que parecia ser o líder veio até perto de mim seguido por seu amigo.
- Então disseram que você é bem rápido. Sabe jogar alguma coisa? Meu nome é Felipe a propósito. - Falou o amigo do cara que me dava uma impressão de ser o líder.
- Não sei jogar nada, literalmente. - Disse embora estivesse lutando ferozmente contra o impulso de falar sobre jogar futebol com a cabeça dos dois.
- É uma pena. - Disse Felipe, quando de repente pareceu lhe ocorrer algo. - Você não está tentando dar uma de humilde, tá?
- Eu realmente não sei fazer nada de esporte. - Olhei para Isa meio preocupado vendo que ela estava meio nervosa perto dos dois, principalmente do líder. - Desculpa, mas você pode dar licença a aula deve começar daqui a pouco. - Infelizmente Felipe logo percebeu meu olhar.
- Tem alguma coisa a ver com a topeira, é isso? Você é idiota? Quer um ótimo jeito de se fuder nesse colégio? Se aproximar dessa vadia. - Disse Felipe.
Isa parecia se encolher a cada palavra como se cada uma delas fosse uma chibatada. Algo se contraiu em meu peito, eu queria proteger a Isa e queria impressioná-la espancando o Felipe e o outro idiota que eu nem tinha me dado ao trabalho de descobrir o nome. Talvez eu tivesse feito isso afinal duvidava que os socos deles vencessem minha pele aparentemente impenetrável, mas o fato é que não fiz. O professor entrava agora na sala e Felipe o outro garoto deram a volta e voltaram aos seus lugares. Isabel me puxou para a cadeira com uma das mãos me fazendo sentar.
- Faça o que fizer nunca faça confusão na aula desse professor, esse especificamente. Nem o Felipe e o Dani ousam fazer isso.
- Ela sussurrou tão baixo que alguém normal teria grandes dificuldades para ouvir.
- Ok. Obrigado. - Sussurrei de volta contando com a audição aguçada que ela devia ter. Ela ouviu, afinal era cega.

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⏰ Última atualização: Nov 13, 2017 ⏰

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