Retalhos de uma vida

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Lembro-me claramente de Eleonora, sua estatura baixa, cabelos pretos bem curtos e olhos castanhos claros e grandes.

Recordo do jeito que me recebia, que fazia o doce de leite e de como assistia eu e meu avô, Otávio, brincarmos.

Uma vez, ela foi encenar uma peça teatral no colégio em que eu estudava, na época eu tinha quatro anos, mas já me orgulhava de ver minha avó tão feliz, deslumbrante; atuando de uma forma tão bela quanto as folhas das árvores balançam em sintonia com o vento.

Sempre foi tudo às mil maravilhas, um mar de rosas. Porém, as rosas contém espinhos, que começaram a machucar Eleonora cedo demais.

2009

O câncer de mama de vovó havia voltado. Não sei em qual época e nem quando descobriram, mas em nenhum momento fui comunicada. Sabia que ela estava doente, mas não estava ciente de seu estado, na época, beirava os oito anos de idade.

Fui dormir uma noite na casa dela, as luzes apagadas, a janela branca com frestas entrando luz, a casa térrea e a rua, mesmo de madrugada, movimentada. Os automóveis circulavam de um lado para outro, comentei com vovó que não conseguia adormecer, não gostava dos barulhos. Ela me disse que adorava dormir ouvindo aquele som, diminuindo gradativamente, trazia uma paz.

Eleonora sempre conseguiu ver a calmaria em meio a multidão.

Quatorze de fevereiro ela me entrega um envelope pequeno, escrito em seu verso "Para Beatriz" com uma letra pequena e um tanto bagunçada feita à caneta azul. Sempre gostei que me presenteassem com cartas, ou apenas poucas linhas exalando sentimento. Talvez ela soubesse disso antes de eu ter chegado a essa conclusão, pois foi esse o meu presente de aniversário.

Apesar da doença, não parou de cozinhar, ir ao mercadinho da rua, falar com as vizinhas, frequentar o grupo de terceira idade. A energia e felicidade esbanjavam em seu corpo, nada beirava o caos, era isso o que achava minha pureza infantil.

Vovó nunca chegou a ficar careca, seus cabelos brilhosos ainda continuavam lá, dando destaque a arte que eram seus olhos. A cada quimioterapia, mais abatida ficava. O fim do ano se aproximava e a época mágica chegava.

Naquele ano, no natal, dei uma passada com meus pais na casa de vovó; a encontrei deitada na cama. Ao me ver, sorriu e tirou cinquenta reais de debaixo de seu travesseiro, dizendo que era para escolher o meu presente. Apresentei à ela a gata de pelúcia que havia ganhado, demos o nome de Lili, abreviação para Linda, mas daquele modo, ficara mais bonito, afirmou.

Vovó adorava bonecos, sendo mais específica, bebês, tinha em torno de cinco, os arrumava com chapéus e roupinhas, um sonho de criança que realizava na velhice.

Quatro dias depois da comemoração do natal, minha mãe grita "Vai filha, acaba esse banho logo!!!". Acabei. A correria tomou conta da casa, e o desespero, conta de nós. "O que foi, mãe?", perguntei me vestindo o mais rápido que podia. "A vovó passou mal", avisou.

Na corrida mais injusta do trânsito de São Paulo, precisávamos vencer. A linha de chegada, finalmente alcançamos: a casa amarela com portão branco.

Sempre vazia, porém aquele dia, cheia de familiares e vizinhos no muro. Assustados e esperançosos com o suspense daquela novela onde o clímax chegara.

Fiquei na casa da vizinha, as filhas dela brincando comigo, tentando me distrair. Depois de algum tempo, meu pai me buscou e fomos para casa de Eleonora. Lá só estava meu avô, certo que sua esposa estava bem e que o que ocorrera era algo passageiro, não sabia de seu real estado, até o momento que meu pai o informou que, as chances de vida eram mínimas. O choro veio forte como o de uma criança. E eu, criança, fiquei forte como um adulto, espiando por trás da porta.

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