Minha alma em lamentos

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Vendo o que se instalava do lado de fora pode concluir que a neblina se fazia dupla, dupla e espessa, já não via nada por onde caminhava, apenas sentia os pingos de chuva batendo, nos seus ombros, no seu cabelo, deixando tudo ainda mais embaçado.

Passava na frente de um bar, sabia que era um, mesmo sem vê-lo, a luz amarelada e fraca que emanava era inconfundível, talvez até conhecesse, talvez até costumava estar ali, mas agora apenas sentia o cheiro de cigarro, bebida barata e, por saber que era um bar, vômito e urina.

Continuava a passos trôpegos pela calçada, aqueles por quem ela passava, quem eram? Ela os conhecia? E eles? Achavam que a conheciam? Talvez. Ninguém conhecia ninguém, isso podia afirmar, com certeza.

Era o fim da calçada. Isso queria dizer que ela deveria parar e esperar até que a luz
vermelha do outro lado da rua ficasse verde. Que regras eram aquelas? Por que ninguém lhe mostrou uma luz vermelha antes? Ou verde, no momento em que ela decidiu que seria vermelha. Por quê? Se perguntar não adiantaria nada, não faria parar a chuva, o vento gelado ou a neblina. Nem a de dentro, nem a de fora. Como queria que tudo aquilo fosse explicado. Não, melhor, que sumisse, só sumisse.

Estava verde. Não. Não está mais. Quanto tempo havia parado ali? Pensando em sua...? Era aquilo que chamavam de tristeza, não era? Sim, podia ser tristeza, quando alguém lhe dizia com a boca cheia "eu te amo" e depois sumia era tristeza. Talvez devesse perguntar a alguém antes. Não, não mais.

Agarrava a bolsa de tecido com a alça transversal que passava por seu corpo e
continuava a caminhar. Alguém poderia dizer que ela estava decidida. Um espectador externo ou alguém que não a conhecesse a um longo prazo.

Antes ouvia o barulho dos carros, via as pessoas, sentia a chuva, agora nem os bares não tem mais cheiros. Continuava a caminhar. Aquele caminho entre uma casa e outra sempre lhe parecera florido. Mas ele deve ter colhido as flores para a outra. A outra que colocou na cama que deveria ser nossa. A outra que beijou com a boca que disse que me amava. A outra a quem fez promessas que deveriam ser minhas. A outra.

Via a padaria onde vendiam a torta de morango favorita dele. Passava por ela e agora lágrimas escorriam. Então seguia e encontrava a loja onde ele comprou as bermudas preferidas dela. Que era do lado da loja em que ela comprou aquela camisa que deu no quarto aniversário de namoro deles. Aquele caminho que era feito aos sorrisos hoje era feito a prantos.

Aquele era o prédio onde ele morava. Estava em frente a ele. Como não reconhecer? Conhecia todos os cheiros do lugar, esquemas e brincadeiras, conhecia mais os moradores que seu próprio morador. Só conhecia. Porque, pra ela, quando se conhece, se conhece por inteiro e não fios confusos de mentiras contadas e histórias inventadas. Se conhece a alma e não se deixa de conhecer a alma, ela via assim.

Subia. O andar dele era o décimo primeiro, ela ainda lembrava da brincadeira que ele fez na primeira vez que ela esteve lá. Ele tinha dito que tudo com ele não era só dez, mas sim 11. Naquele dia ela ria. Hoje... hoje não sente mais nada.

Podia entrar, tinha as chaves. Mas quando chega na porta do apartamento dele sente medo. Medo por tudo que viveram e poderiam viver. Quem sabe se fingisse que tudo isso não aconteceu e sorrisse para ele mais uma vez, como da primeira vez.

Mas qualquer pensamento desmorona quando são ouvidos risos. Risos de mulher. Antigamente ele também a fazia rir. Toca a campainha, espera que ele abra, não quer vê-la.

Diferente do imaginado quem abre a porta é a outra. Quando vê a arma saída da bolsa de tecido nas mãos da garota traída leva as próprias, em concha, até a boca e recua dois passos. Ela ri com ele, abre a porta pra ele e está só de camisola, na casa dele. Toda raiva vem à tona. Atira. Uma. Duas. Três. Quatro vezes.

Ouve a voz dele. Para. Entra no apartamento. Ele olha assustado e tenta falar alguma coisa. Que saí incompreensível e sem sentido. Então tenta de novo. Agora uma nova abordagem. Culpa ela pela morte da outra.

Ela sente dor. Ela atira. Uma. Duas vezes.

Minha Alma em LamentosOnde histórias criam vida. Descubra agora