O negro antes do branco

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Uma aquarela se espalhava pelo céu, era fim da tarde, tons de vermelho e laranja faziam o pigmento. Eu gostava daquele céu. Os homens passavam na rua embaixo da minha janela, dirigindo seus carros imprudentemente. Eu sorria. Não. Eu chorava. Não. Eu não existia. Quem era a garota na janela do sétimo andar?

3 dias de chuva, 13 sem ver ninguém. Depois da morte dele nada mais importava. Meu apartamento era um lugar frio e solitário. Eu ainda não tinha tirado o anel do dedo. Olhava para os convites em cima da mesa. Quando fomos escolher rimos tanto, ele não via diferença entre cores e texturas. Eu tentava explicar. Ele fingia entender. No fim escolhemos o indicado pela dona da loja.

Por mais que a lembrança me fizesse sorrir, eu não estava feliz.

Era um apartamento enorme o lugar onde eu me encontrava, ele ia se mudar pra lá junto comigo depois do casamento. Eu não deixei ninguém mexer em nada aqui, ainda havia suas camisas no meu armário, sua escova de dentes no banheiro, seu cereal na despensa da cozinha, além de uma ou duas coisas espalhadas pela casa. Lembrar a história de cada uma delas era tão doloroso. Mas eu não poderia me livrar delas, era mais doloroso ainda. Era como se ele fosse embora novamente.

Eu saia de perto da janela, ia até o banheiro onde me olhava no espelho, eu era uma fração do que já fui. Tinha os olhos cansados, cabelos desgrenhados e estava com o mesmo pijama a alguns dias. Solto um suspiro, aquela visão só me entristecia, ele gostava tanto da minha vaidade.

Eu vou até a cozinha. Aquele andar pela casa havia se tornado uma tortura silenciosa, eu era uma fantasma vagando pelo meu próprio lar. Pego o cereal dele na despensa, uma tigela e tiro o leite da geladeira,vou até o outro lado da mesa e sento, a outra cadeira pertencia a ele, então, depois de olhar para ela, me sirvo.

Não tinha fome. Apenas mexia o cereal com a colher. Aquela era a hora em que nos sentávamos a mesa e conversávamos, ele sempre comia seu cereal nesses momentos. As últimas conversas eram todas sobre o casamento, a conversa que tivemos antes... antes de que ele me deixasse, foi sobre a minha prova do vestido de casamento. Lembro de suas risadas e como ele disse que eu ficaria bem até enrolada em uma toalha de mesa.

Nem as lembranças felizes me alegravam mais. Não fazia sentido, o motivo delas fora embora. Eu não chorava mais descontroladamente como nos primeiros dias, aqueles primeiros dias de chuva foram a minha chuva pessoal, minhas lágrimas, apenas vagava como um zumbi pela casa agora.

Resolvi que era hora de sair daquele tormento. Eu ainda não tinha forças para querer me divertir, mas não tinha mais forças para sofrer. Paro por um momento e penso no que eu deveria fazer, pra onde ir. Estava claro que eu não conseguiria sair do prédio, mas eu não queria ver qualquer pessoa. Então eu de repente sabia pra onde ir.

Eu ia até o quarto e pegava o roupão, colocava por cima do pijama, calçava os chinelos de pano e prendia o cabelo de uma forma que ficasse mais apresentável. Decidi que devia lavar o rosto antes de fazer minha pequena excursão pelo prédio. Sim, com certeza eu não poderia ir além, então teria de espantar minha solidão ali mesmo, deixá-la junto de outrem.

Depois de ficar mais apresentável peguei as chaves do apartamento, sai e o tranquei. Peguei o elevador e desci para o andar do estacionamento do prédio. Aquele elevador fazia barulhos e sacudia um pouco, o que me assustava, apesar de que sempre tinha uma pessoa ao meu lado que me abraçava e dizia que tudo ficaria bem. Eu confiava naquelas palavras, mas agora, no que confiaria?

Mas não importava mais, eu não tinha mais medo disso, na verdade eu nem ouvia ou sentia, barulhos ou movimentos, eu não vivia mais. Ouvi o "clanc" que indicava que cheguei e a porta se abria.

Andei pelo estacionamento, andei para um lado e para o outro. Então deixei o roupão cair e deixava os chinelos de lado. Soltava o cabelo e em meio aquelas vagas vazias eu começo a dançar. Mexo a cabeça, braços e pernas em movimentos curtos, depois eu me solto e começo a rodopiar. E girar. E girar. E girar.

Então sento no chão, ali mesmo, abraço minhas pernas e solto um choro desesperado. Choro por alguns longos minutos. Nem a dança que me alegrava tanto me alegra mais. Graças aos sorrisos que eu dava enquanto dançava ele se aproximou de mim. Agora tudo isso só era como um espinho em meu coração.

Fico de pé, então vejo na parede o quadro de força do prédio. Algo lá me atrai. Caminho com passos lentos pelo concreto frio até chegar bem próxima. Fecho os olhos e inspiro, quero tanto ficar perto dele, minha vida está cinza, sem sentido. Então, enquanto expiro estendo a mão. Não tinha proteção ali.

A luz deixa o prédio no mesmo momento que deixa os meus olhos, enquanto meu corpo ficava ali, estendido no chão. Enfim o sofrimento tinha um ponto final.

Minha Alma em LamentosOnde histórias criam vida. Descubra agora