Caindo Como a Neve

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-Essa história foi uma redação que eu fiz para o colégio com o tema distopia-

Caindo Como a Neve

Fujo. Fujo de todo o resto, fujo de mim mesma. Corro, apenas corro, os galhos congelados rasgam minha perna superficialmente. Meus braços tentam amenizar os cortes na região do rosto. Lágrimas desesperadas molham minha face me fazendo sentir um frio torturante que perfura minha pele.

Estou caindo como a neve e o gelo me queima tanto quanto o fogo. Não suporto mais esse ruído, paro de correr. Deixo o desespero me consumir, pensei ser mais fácil assim. O que era aquele barulho? Não saía da minha cabeça, continuamente, e parecia que para sempre.

Aperto meus ouvidos com as mãos e grito até minha garganta doer como um último suspiro de sanidade. Soluço incontrolavelmente, estou ficando sem ar. Caio no chão e a neve molha minhas roupas, começo a tremer. Mordo meus lábios com tanta força que um filete de sangue mancha de vinho a neve
perfeitamente branca.

Não sei por que perdi o controle agora. Como sou fraca. Convivi com o barulho por toda a minha vida. Me esgotando de dentro para fora. Assim como todos os outros. Vinha de dentro da minha cabeça. Um lembrete, uma pequena tortura constante.

Um incômodo que depois de um tempo todos são obrigados a suportar. E se não suportam, enlouquecem. Como eu agora. Continuo chorando loucamente com as mãos nos ouvidos. Nem sei o porquê, o barulho não vem de fora, obviamente.

Será que os anjos não podem me ajudar agora? Essa agulha que perfura minha parte mais sensível, o rompimento entre a realidade e a insanidade, essa voz, não humana, incompreensível, gritando e me arranhando, me dizendo sempre para pular do penhasco. Nada disso é importante para eles, claro.

Porém não posso culpar ninguém por isso, além de mim mesma. Aliás, se eu fosse um deles também não me importaria. Obviamente não são anjos literalmente, mas irradiam luz, ou talvez poder. Não sei, e nem tenho como saber.

Naquela noite, a única em que vi um, o som me cegou. Dessa vez parecia estar inundando minha mente de tão alto. Impulsivamente bati a minha cabeça contra a parede com o intuito de cessar o grito. Tenho até hoje a cicatriz acima da minha sobrancelha. Estúpida sempre.

Em algum momento, que eu perdi, paro de chorar. Continuo tremendo. Acho que estou tendo espasmos no chão. Minha roupa já está completamente encharcada, e minhas feridas pareciam sangrar mais. Como o último estágio do meu colapso, desmaio. Sonho com o silêncio.

Quando acordo, o barulho havia ficado um pouco mais baixo, porém terrivelmente agudo. Já devia ser de dia, mas as copas das árvores bloqueavam a claridade. Continuo andando para frente, pelo menos para a minha frente. O barulho fica insuportavelmente mais alto quando sinto uma presença, claramente me mandando embora. Mas vamos lá, o que tenho a perder? Quem sabe hoje o som pare, para sempre.

Quando vou chegando mais perto dessa... barreira? Não sei. O barulho fica cada vez mais dolorido. Posso ver pelo caminho estranhos espinhos de pura luz. Espere...não é luz.... É algo maleável. Quando chego perto da anomalia e a toco ouço um suspiro melodioso. É som. Eu estou vendo o som, é vivo e parece estar dançando.

Me assusto com a descoberta, me afasto rapidamente receosa. Continuo caminhando, já que é o máximo que posso fazer. Vou chegando mais perto da divisa. Não a vejo, mas sinto-a claramente. A sonância chega a ser enlouquecedora agora, nunca esteve tão alto. Sinto uma tentação de sair correndo. Não hoje.

Sinto-a a um palmo a minha frente. Tudo me empurra para fora, mas eu desejo entrar. Em um gesto de insanidade, ou talvez burrice, me jogo para frente. A sensação seguinte é difícil de descrever. É como estar sendo eletrocutada, mas dentro da sua cabeça. Caio para trás. Um jato de informação invade a minha cabeça. Ouço uma voz harmoniosa dentro da mesma.

- Com o tempo você vai perceber um som. O silêncio é tudo o que você ouve, suas lágrimas estão caindo como neve e não é que eu desejo isso a você. Eu só sei porque eu estive lá também. Um dia virá em que você vai entender o quanto dói perder a única coisa que você tinha e saber que você nunca vai ter isso de volta.

​Não tenho tempo de digerir essas palavras, meu subconsciente me leva para um passeio enquanto meu corpo dorme. Estou na minha cidade, vejo de cima, sou uma mera expectadora. Quando meus olhos param de olhar e começaram a observar, percebo tudo que não via antes. Tudo que não era escondido, mas estava além da minha, assim como de todos, percepção.

A fábrica. O som. Desespero. Todos nós.

​Temos que nos ocupar, se não a insanidade nos consome. Somos submissos. Sempre fomos, para sempre seremos. Escravos das ondas sonoras, projetadas em nossas próprias cabeças. Trabalhamos na fábrica para distrair nossa mente. Somos a mão de obra. De quem? Acho que tenho uma ideia.

Subitamente sou puxada para outro lugar, minha casa. Uma lembrança. Dessa vez eu sou eu. Estou encolhida no chão, com a cabeça sangrando. Era de noite. Aquela noite. Paro de chorar, vejo tudo o que eu perdi no dia. Todas as informações que eu não absorvi. Tudo congela, menos eu e ele.

Ele, o anjo. Aproximo-me dele, e quando chego perto percebo: Ele é igual ao espinho. É feito de som. Ondas sonoras, vibrações, todas as canções que eu possa imaginar, ali. Nele.
​​
​- Quem é você? – Chego a perguntar
​-Deveria se preocupar em o que está acontecendo com você nesse momento. Está morrendo. – Ouço sua voz na minha cabeça.

Nunca senti nada tão aconchegante. Sua voz era como um ronronar de um gato. Triste mesmo é que era verdade, o que dizia. Podia sentir-me apagando.

​-Concentre-se.

Segui seu conselho. Segui sua voz por dentro da minha cabeça, como um caminho, pelas minhas lembranças.

Quando volto a realidade sinto uma dor alucinante nos meus ouvidos. Nunca havia sentido algo assim. Meus ouvidos sangravam freneticamente. O que estava acontecendo? Quando me desvencilho da dor, finalmente percebo a coisa mais importante.

O que era esse barulho que eu estava ouvindo? Nunca havia experimentado nada parecido. Podia finalmente ouvir os meus e só os meus pensamentos. Será que era isso? Será que era....

Silencio?

Nunca fui tão forte. Nunca mais ouvi o canto dos pássaros.Havia meses que eu era apenas eu, meses sem ouvir alguma palavra da minha mãe, sem ouvir a risada da minha irmã. Sem ouvir nada. Até aquele dia...

Caminhava pela floresta refletindo sobre como eu havia sobrevivido o barulho por tanto tempo, como eu havia sido parte da armadilha deles por tanto tempo, e como os outros ainda o fazem.

Quando pela primeira vez em muito tempo, eu ouço.

Ouço um suspiro. Dentro da minha cabeça. Me chamando, era uma trilha.

Era ele.

Vou correndo ao seu encontro, não sei o que esperar, talvez respostas. Nunca corri tão rápido, nunca vi tão bem. Por que eu estava mais forte? Por que precisava dormir menos? O que eu era? E o que havia me tornado? Todas essas novas habilidades palpitavam na minha mente.

Eu o vejo. Não tinha uma forma física, apenas sonora. Ele, igualzinho como eu me lembrava. Seu sussurro acolhedor acaricia meus ouvidos.

​-O que aconteceu comigo? – Pergunto, sem perceber a lágrima que descia pelo meu rosto.

​-Silencio. – A resposta veio na minha cabeça.

​-Por que me sinto mais forte? Por que faz isso com eles? – Já estava aos prantos, sedenta por respostas.

​- Por que silêncio é poder.

Marina Johas.

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