cap. 2

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    O porteiro do meu prédio era uma figura. Morava com a mulher e um filho num cômodo que ficava na garagem do prédio.
Elias era educado, simpático e, sobretudo, bom caráter. Não era dado a fofocas, da boca dele não se sabia nada dos moradores. Dele tudo se sabia.

    Elias veio do Acre sozinho. Pra la de vinte anos que não via a familia. Quer dizer, sua familia toda naquele momento, era sua mulher, Didi, e seu filho, Bruno.

    Certo dia, ele também me disse que ja havia escutado a flauta doce. Didi achava que era  o filho do pianista do prédio onde ficava o bar. Ela sabia menos que eu. O filho do pianista estudava na minha escola. Para tristeza do pai, não havia herdado o menor talento musical. Era um esportista, como a mãe.

     Didi, de vez em quando, fazia uma faxina na casa do pianista, jurava que ja havia visto o garoto tocando flauta. Deve ter sido um delírio. Eu conhecia o Meleque melhor que ela.

     As informações de Didi podiam não ser tão confiáveis, mas seu filho, que eu chamava de pequeno espião, sabia de tudo e de todos. Garoto observador, e como todo bom detetive, mantinha a descrição, não era fofoqueiro.

     Bruno tinha 13 anos e herdava as minhas roupas. Sei que herdava roupas de outros moradores, mas as minhas eram especias. Estou certo de que adorava, pois não foram poucas vezes que o Vi exibindo meus jeans surrados e minhas velhas camisetas.

     Bruno herdou também minha bicicleta. Crescemos juntos, todos os dias de manhã, eu esperava a van, que me levaria para escola particular na companhia dele. Não era preciso ser sensível de mais para perceber a admiração que ele tinha por mim. Quando a van chegava, Bruno montava na bicicleta e ia para escola publica onde estudava.
       
       Eu gostava, não nego. Nada como um pentelho submisso, um fã que não media esforços para agradar seu ídolo. Era muito útil também na hora de me apresentar as garotas. Ele era o queridinho das meninas do prédio.

     Foi Bruno, por exemplo, que descobriu quem era o responsável do som doce da flauta doce.

    Hoje o que me vale é poder confessar essa história que tanto me perturbou nos meus 17 anos. Uma historia que começou com um pingo de água de um certo ar-refrigerado e uma flauta doce.

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     Era sempre na mesmo hora. A tarde caia e o flautista dava o ar de sua graça. Diariamente as 6 horas da tarde, a "Ave-Maria", de Gounod, dava as boas-vindas a noite. Tínhamos uma coisa em comum: a persistência. A evolução do músico era notória e seu repertorio crescia, sempre aberto com um acorde de "Ave-Maria".

      Não sei explicar bem por que razão, mas aquela musica começou a mexer tanto comigo a ponto de desmarcar os meus horários. Parecia que eu acordava para vida só no primeiro acorde, um notívago que desperta ao pôr-do-sol. Cheguei a sacrificar algumas baladas de sábado a noite quando a música se estendia até mais tarde. Verdade seja dita, eu adorava, afinal era a única noite da semana em que eu podia ficar sozinho em casa. Meus pais adoravam dançar e o samba da gafieira aos sábados era um compromisso, como a missa de domingo.

     Quando era menino, ia à missa aos domingos. Fui me liberando aos poucos, por meio de um mentira. Inventei uma diarreia que acontecia sempre no horário da reza. Meus pais não pareciam aborrecer-se com isso. Eu era um bom menino e isso bastava. Filhos únicos são assim. Basta que existamos e ja somos tomados como uma dadiva. Tenho certeza que meu pai e minha mãe rezavam por mim na missa de domingo. Viviam felizes e a única e absoluta desgraça que poderia acontecer na vida deles seria que a natureza não seguisse seu curso normal e eles me perdessem.

     Apesar da morte ser um assunto fascinante para um adolescente, agente nunca acha que vai morrer aos 17 anos. Deve ser por isso que é tão bom pensar nela, é sempre coisa dos outros. A vida dos outros que via morrendo pelas ruas da cidade.

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    Instalei meu computador estrategicamente na janela.  Desde então, aquela vista passou a ser a minha tela de cinema. Era como um filme cuja a ação toda se passava num único cenário. E havia também uma trilha doce de uma flauta e o ar-refrigerado que não parava de pingar, a lembrar-me do amargo da vida. Foi a epoca em que vivi mais intensamente o dueto de amor e odio.

Perdoem o tamanho haha!! Tive um imprevisto e tive q postar mais cedo.
   Espero q gostem...

              ***beijos criativos***

signo de câncerOnde histórias criam vida. Descubra agora