O porto

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"A vida é um constate recomeço!"

Nunca antes essa frase teve tanto efeito sobre mim. Aqui estava eu, no atracadouro da Ilha de Carpa, após a breve, porém conturbada travessia do continente até aqui. Depois de um dia inteiro de viagem havia finalmente chegado, e, pela primeira vez, senti medo. Por mais difícil que fosse a vida no meu interior, aquela era minha zona de conforto. E, apesar de muito excitada por finalmente dar o primeiro passo da minha liberdade, não podia negar o quão assustador era sair de lá e encarar o mundo. 

Vivi 24 anos na minha casinha pequena, dividindo a cama com mais duas irmãs, acordando cedo para ajudar minha mãe nas tarefas de casa, e, às vezes, aos meus irmãos na lavoura não muito longe dali. Minha vida foi bem difícil, mas apesar disso nunca pensei em fazer como minhas irmãs mais velhas que logo micinhas se casaram no único e irracional desejo de dar o fora dali. Logo percebi que ao fazerem isto, elas não se livraram das dificuldades, elas só atrelaram suas vidas a um casamento sem amor, que as aprisionaria. 

Eu não, casar era o último dos meus planos. Segui ali, ao lado dos meus pais, com todas as dificuldades e a falta de conforto, com a incerteza se teríamos fome nos períodos mais secos do ano, mas ali, pois nada melhor do que a casa dos meus pais aquela terra poderia me dar, e de fato não deu.  Estudei e me formei na escola da cidade um pouco distante do nosso pequeno sítio. Depois disso, consegui uma bolsa em uma universidade à distancia numa cidade próxima da minha. O fato das aulas presenciais ocorrerem apenas uma vez na semana, tornava possível o dispêndio com a passagem que eu financiava trabalhando como diarista na casa de um fazendeiro da região. A família Duarte já tinha sua empregada, mas me chamavam sempre pra ajudar na faxina mais pesada. 

E foi assim que com 23 anos recebia meu diploma de letras vernáculas.  Meu sonho era ser escritora de livros de ficção, mas, sem um computador ou o tempo de dedicação necessário, nunca conseguiria. Após um ano de formada consegui uma vaga de substituta na escola do povoado. A melhor notícia da vida, pois agora teria tempo de me dedicar à escrita sem precisar fazer trabalho pesado todos os dias e com um ano de trabalho talvez pudesse ter meu computador. Mas, com apenas um mês na escola recebi a carta da minha tia, com uma proposta que mudaria todos os planos feitos até ali.

Tia Cida era irmã do meu pai e havia ido embora de Lages muito nova. Foi para São Paulo e lá se casou. Trabalhava com o marido na mansão de uma família muito rica, ela como doméstica e ele como motorista, há cinco anos ele faleceu, deixando-a abalada emocionalmente e muito abatida fisicamente. Na época, Tia Cida passou uns dias lá em casa e pudemos nos aproximar mais, quando ela partiu me disse ao pé do ouvido que um dia me tiraria dali, e finalmente tirou.

Há dois anos ela nos avisou que voltaria para o nordeste, a trabalho no entanto, pois o filho dos patrões se mudaria para uma ilha no sul da Bahia e a convidou para ser a governanta da sua propriedade. Fiquei muito feliz com a notícia acreditando que teria frequentemente a visita da tia tão amada, pois, apesar de morarmos no semi-arido baiano, distante do litoral, estaríamos muito mais próximas. Ledo engano, minha tia nunca veio e, nas raras correspondências que chegavam, demostrava o quão diferente era administrar a propriedade da ilha e que nunca poderia se ausentar. 

Há duas semanas, recebi o convite para ir trabalhar com ela "o trabalho não vai ser fácil e nada tem a ver com seu sonho, provavelmente estará cansada ao fim do dia e raramente terá uma de folga" minha tia escreveu, mas não seria trabalho duro que me afastaria de enfim ter a oportunidade de ver além dos campos secos de Lages, de ver o mar... No mesmo instante peguei um transporte pra cidade, liguei para minha tia naquele mesmo dia. Ela até me deu um celular uma vez para que pudéssimos nos falar sempre, mas naquele fim de mundo nunca chegaria sinal. Então, quando queríamos fazer um telefonema era sempre a mesma dificuldade. 

A preparação foi rápida assim como a despedida. Meu pai foi pra roça logo cedo pois não gostava de adeus, minha mãe, apesar de forte e dura, teve os olhos marejados ao dizer que me impediria se pudesse, mas nunca me pediria para ficar naquela miséria, sabia que não era justo. Pediu que se sobrasse algum dinheiro no fim do mês que lembrasse das muitas bocas que eles ainda tinham. Concordei. Tia Cida não havia me dito quanto ganharia, mas sempre pensei em ajudar minha família quando fossem embora.

Então saí. Saí para o desconhecido, pegar um ônibus que viajasse mais de cinquenta quilômetros pela primeira vez. Minha mãe disse pra aproveitar e dormir na viagem, mas como eu poderia dormir com tantas coisas pra olhar? Tive de trocar de ônibus duas vezes no caminho, mas após finalmente 6 horas de viagem, entre estrada e conexões nas rodoviárias, finalmente estava no pequeno porto que me levaria à Ilha de Carpa e pude ver, pela primeira vez o mar. 

O mar!!!

Queria gritar alto, apontar e chamar todo mundo pra ver: "Gente, o mar! Como vocês podem andar normalmente sem prestar atenção nisso aqui?" pensava. Era muito, tipo infinitamente maior do que eu imaginava, tentava raciocinar como entender aquela imensidão mas não conseguia. A sensação de ver o mar pela primeira vez me impactou muito, chegando a deixar escapar lágrimas dos olhos. Agradeci mentalmente a Deus por me dar a oportunidade de ter aquela experiência. Fiquei olhando abobalhadamente por ao menos uma meia hora antes de finalmente tomar a iniciativa de procurar por aquele que me levaria à ilha.

Seguindo as instruções de minha tia, procurei por Seu Cabral, após indicações, achei o senhorzinho desdentado arrumando algumas coisas em seu barquinho, pela descrição de minha tia era ele mesmo, e, após mencionar a Tia Cida, ele pulou do barco para me cumprimentar. 

- ho hoo minha filha, chegou mais cedo do que eu pensei! Cidinha me recomendou: espere minha menina na estação, seu velho cheio de manias. Ha haaa, sua tia é mal humorada, menina, mas eu tenho muito apreço por aquela danada. Então se você puder relevar minha falta de tino, não diga pra sua tia que eu não fui lhe buscar, sim? 

Não sei por que, mas gostei de cara daquele senhor. 

- Vamos fazer um trato seu Cabral, me ajude com as sacolas e nada digo a minha tia. 

- Ho hooo minha filha, isso você não precisa nem pedir. Mas escute, essa é sua mudança? Trouxe uma muda de roupa foi? - disse, constatando com preocupação minha pouca bagagem.

Não pude deixar de rir com a obvia constatação de seu Cabral e apenas dei de ombros sorrindo.

- Olhe, eu vou fazer melhor, vou lhe dar um presente pela minha falta. 

- nãoo, o senhor não precisa me dar nada, não houve falta alguma - tento convencê-lo sem sucesso. 

- ha haaa menina esse você não pode recusar, é questão de saúde. 

Dizendo isso, seu Cabral chama um vendedor de chapéus que ia passando por ali e me compra um de abas grandes. Coloca em minha cabeça e diz: 

- Hohooo isso sim, agora podemos ir, sem muita muda de roupa da pra passar, mas sem um chapéu, haaa, não se vive sob esse solzão não. 

- Muito obrigada, seu Cabral, agora vamos lá?

- Vamos sim menina, que o mar hoje tá numa agitação só. 

Realmente a travessia foi meio conturbada, mas nada que me assustasse. A excitação não dava lugar para o medo, ao menos não até finalmente chegar ao atracadouro de Carpa e a ficha cair de verdade.

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⏰ Última atualização: Feb 05, 2017 ⏰

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