IV.

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Certa vez, uma mulher ousou olhar além do que era permitido a qualquer um que vagasse pela terra com um mínimo de boas intenções.

Ela, mais do que ninguém, sabia quando aquela guerra, que dividia friamente o mundo, havia sido iniciada. Fora antes do que todos podiam sequer supor e se lembrar. Acontecera em tempos perdidos e roubados, que não nos pertenciam mais e que talvez nunca nos tenha pertencido, de fato. E sim, a apenas aquela única senhora de estranha importância. Seu nome era Mary Kate Blomer.

Mary era uma mulher amarga e arrogante. Sempre fora desprezível e compreensivelmente detestada, alguém que as pessoas não gostariam de ter por perto quando não lhes fosse útil.

Ah, e como não lembrar-se do passado que a construíra? Era inevitável. Era paraplégica desde os quinze anos e havia conquistado fama e prestígio no mundo inteiro devido suas pinturas inovadoras, que a renomaram como a maior gênia da arte dos novos tempos. E foram pelas pinturas que o velho e solitário Richard Smith se apaixonara. Viúvo há mais de doze anos e com a recente morte do seu único filho, problemático o suficiente para tê-lo envelhecido ainda mais rápido, viu na talentosíssima e elegante Mary, a companheira ideal para as décadas finais de sua vida. Essa seria apenas uma história qualquer e até mesmo desinteressante, se Smith, pouco tempo depois do seu casamento, não tivesse sido eleito Presidente dos Estados Unidos. A situação vivida pelo mundo naquele tempo era absurdamente caótica, na iminência de uma Grande Guerra Mundial. E a humanidade não estava preparada para isso. Como nunca estaria.

A mulher mexeu-se, impaciente, em sua cadeira dourada e flutuante, enquanto decidia levar seus pensamentos para os momentos que impuseram ao mundo aquela guerra desastrosa, prestes a ter seu fim igualmente trágico – para alguns, não para ela, e isso era o bastante.

De fato, sabia como poucos sobre os anos perdidos do ontem. Um passado recente, destruído entre bombas, crises e fé. O mundo anterior à guerra fora enterrado junto a amnésias coletivas e suposições improváveis. As memórias resistentes apenas se misturavam junto a fantasias, tão reais quanto o que tanto tenta-se lembrar e esquecer. Aquela mulher não apenas vivera tais tempos quase imaginários, como ajudara a formar o mundo que então se tinha. Mesmo que, a seu ver, a paz nunca tenha passado de um termo bastante subjetivo e superestimado pela humanidade.

Talvez por isso, a forma como poderia vir a descrever tais anos confusos, possivelmente, não viesse a ter, junto a suas palavras calculadas, nada mais do que frieza e um rigor quase cientifico, sem que contudo conseguisse poupá-la de parcialidade, sempre de acordo com a forma segundo a qual justificava suas ações para si própria.

Tudo começara há muito tempo antes, mas se um ano pudesse ser escolhido entre todos os outros, por certo a mulher escolheria o mesmo que tirara os movimentos de suas pernas. Fora a partir dele que um pai e um filho deram início a uma nova e promissora religião, que se tornaria rápida e extremamente popular, poderosa e seguida por pessoas de todos os vastos cantos do mundo. Numa época de tanta escuridão, um pouco de luz cegou os humanos que já haviam se perdido de si próprios.

Foi o cativante Theodore Packester que iniciou a propagação da tal nova doutrina sobre a Terra. Nomeara seu filho, Fauster, de apenas dezessete anos na época, como o novo profeta– aquele que viera para a terra, naquele momento tão difícil de ser vivido, com a missão de revelar a trindade verdadeira e de servir como ponte entre os Deuses e os humanos eleitos.

Para ser salvo era simples, fácil: bastava ter fé e sacrificar-se por eles se fosse preciso. Quanto mais fiéis e dedicados a suas palavras fossem, mais desejos eram ouvidos e realizados.

A mulher lembrava-se bem de quando vira Fauster pela primeira vez. Havia nele a juventude que nela também habitava, junto à determinação de lutar por uma nova forma de existência – coerente, precisa, convicta. Packester a tirou de seu vazio ideológico. Deu a ela, assim como a milhões de jovens sem perspectivas, uma nova ideia de mundo pelo qual se sacrificar. Aqueles tempos eram conturbados e decepcionantes – e nada melhor poderia ter acontecido ao mundo do que a Revelação de Packester. Que livraria as gerações futuras de tamanha turbulência.

A GUERRA E O FOGO: A Rebelião dos PerdedoresOnde histórias criam vida. Descubra agora