QUANDO ASTRID CUMPRE SEU DEVER

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O unicórnio deu o último suspiro. Dentro de seu peito, o coração tremeu e parou. A menos de 20 metros de distância, eu o senti morrer, e o mundo voltou ao normal. O fogo e a inundação diminuíram, o túnel se alargou, e meus pensamentos voltaram a ser meus. Baixei o arco e corri até o corpo do animal, uma corrida humana, em ritmo humano, quase uma lesma em comparação à corrida recente instigada pela velocidade de caçadora. Inclinei-me sobre o corpo e retirei minha flecha. Tinha perfurado tanto o pulmão quanto o coração, e a ponta, feita de alicórnio, estava ensopada com o quase preto sangue arterial do
kirin. Vapor subia do cadáver aos meus pés, rodeando as minhas pernas e se misturando à névoa do amanhecer no campo. Limpei a flecha na grama e a coloquei de volta na aljava. Não eram flechas tão comuns a ponto de podermos perder alguma.
Peguei a faca e me ajoelhei ao lado da cabeça do unicórnio. Os olhos amarelos estavam vítreos, desprovidos da sede de sangue que havia pouco tempo dominava nós dois.
Eu estava cortando seu crânio cuidadosamente quando Cory chegou.
- No fim das contas não precisava de apoio, então? - perguntou ela, ofegante.
- Por causa de um único kirin? - respondi, sem erguer o olhar.
Durante o último mês, extrair alicórnios tinha se tornado uma operação post-mortem automática. Era enfiar a faca na cavidade ocular até o arco orbital, dar um empurrão rápido para cima, quebrando a cavidade nasal; depois usar o próprio
alicórnio como alavanca para destruir a parte de cima do crânio e arrancar os ligamentos e a pele que protegiam a base. No começo, simplesmente serrávamos a parte do chifre que conseguíamos segurar, mas agora tentávamos atingir o máximo da raiz
e guardar as reservas de veneno.
Cory me observou trabalhar.
J- Quantos abates você tem, contando com esse?
- Nesta caçada? - perguntei, e soltei o alicórnio. - Quatro?
Cory não disse nada. Joguei a trança por cima do ombro com a mão menos suja de sangue e olhei para ela.
- E você?
- Zero.
Fiquei de pé.
- Jura?
Ela me deu um sorriso tenso.
- Alguém sempre acerta antes de eu ter oportunidade.
Se a declaração tinha a intenção de ferir, mal fez efeito junto ao veneno de alicórnio. Por baixo do meu suéter, gotas de suor pinicavam a pele macia da cicatriz na base de minha escápula.
- Não é uma competição - argumentei.
Seu sorriso ficou ainda mais tenso.
— Todas as evidências apontam o contrário.
Juntas, encharcamos o chão ao redor do unicórnio com retardadores de chamas, pegamos nossos frascos de gasolina e ateamos fogo no animal morto. Tínhamos aprendido que era a única maneira de lidar com os corpos. Nenhum abutre ou inseto tocaria nos restos do unicórnio. As mais corajosas entre nós até tinham experimentado a carne, perguntando-se, como
acontecia com tantos outros aspectos desses animais, se as caçadoras tinham uma tolerância maior aos unicórnios. Mas, aparentemente, a carne era horrível. Até Grace, que comia tripas à moda romana com alegria, cuspiu tudo. Assim, a cremação era a única opção.
Cory e eu voltamos para o ponto de encontro sem mais conversa. Sinceramente, eu não conseguia entender a fonte de sua
mágoa. Quando eu matava um unicórnio, era mais por reflexo que por qualquer outra coisa. A magia me dominava. Eram apenas eu, minha presa e minha arma. Não havia discussão com as outras caçadoras sobre de quem era a “vez”. Hesitação
poderia resultar em uma de nós morta. Unicórnios se movem rápido demais para que possamos parar e pensar quantos cada uma já matou. Se eu tinha chance, aproveitava. A alternativa era uma chifrada na barriga.
Eu sabia disso muito bem.
Duas das outras caçadoras que nos encontraram na clareira estavam sujas do sangue escuro de kirin, embora só uma delas estivesse segurando um chifre. Grace girava o alicórnio como um bastão repulsivo e Ilesha parecia desorientada.
— O chifre estava quebrado — explicou ela, enquanto enrolava uma atadura na perna. — Os dentes ainda funcionavam.
O restante das caçadoras permaneceu alerta, os corpos tão tensos quanto as cordas dos arcos, os queixos erguidos, os olhos vivos e em constante movimento.
— Já chega — resmungou Cory. Sozinha entre as malsucedidas, deixou os ombros penderem, e a ponta de seu arco se arrastou na terra. — Não tem mais nenhum.
Ela estava certa, é claro. O sol já estava subindo atrás das colinas distantes, incendiando a neblina matinal e enviando qualquer unicórnio de volta ao esconderijo, até o pôr do sol. Unicórnios são criaturas crepusculares, ativos entre o anoitecer e o amanhecer, quando era mais provável que as sombras e a névoa pudessem protegê-los dos olhos e da memória dos humanos.
Era raro um kirin ficar exposto à luz do dia. Apurei meus sentidos ao máximo, mas não captei nenhum traço restante em meio ao aroma de combustível queimando e terra molhada.
Olhei para as outras seis garotas na clareira. Apenas poucos meses antes, seriam uma visão inimaginável: as roupas manchadas de sangue, segurando pedaços dos monstros que assassinaram. Dois meses atrás, poucas pessoas sequer
acreditariam que unicórnios existiram. E, mesmo que tivessem existido, não teriam sido bestas venenosas comedoras de
homens, e sim criaturas gentis, cintilantes e mágicas. Era o que dizia a história, pelo menos. E era tão precisa quanto a ideia de que nobres medievais mantinham virgens donzelas apenas como isca de unicórnio. Para que prolongar o tema? Nós, virgens donzelas, éramos capazes de fazer mais que simplesmente atrair e capturar os animais. Podíamos nós mesmas atirar neles. As mulheres de minha família foram caçadoras de unicórnios desde tempos imemoriais, exceto por aqueles esquisitos 150 anos
durante os quais, erroneamente, achamos que os unicórnios estavam extintos.
Caçadoras de unicórnios podem saber mais sobre os monstros do que uma pessoa comum, mas até nós cometemos erros.
Na verdade, se eu começasse a catalogar as coisas que não sabíamos sobre unicórnios e sobre nossa magia de unicórnios, ficaria aqui o dia inteiro. E minha manhã já fora longa o bastante.
Terminei de examinar o círculo. Tinha mesmo ultrapassado minha cota? Ilesha matara três, Grace, cinco; Melissende e Ursula acabaram com dois cada uma, e Zelda acertara um. Franzi a testa e dei um peteleco em um pedaço de crânio grudado
nas costas de minha mão. Talvez eu estivesse no lado alto da balança, mas certamente não era nada bizarro. E, como expliquei a Cory, aquilo também não era uma competição. Nós caçávamos como grupo e ajudávamos umas às outras nos abates se o
disparo inicial não derrubasse o animal.
É claro que, em quase todos os casos, quando um unicórnio virava meu alvo, isso significava que iria morrer. Os dias em que eu arriscava qualquer coisa que não fosse um disparo mortal já estavam para trás. Duas semanas antes, atingi um unicórnio
na perna, e, antes que eu conseguisse pegar outra flecha, ele tinha dado um coice no rosto de Valerija. Ela ainda estava se alimentando por um canudo.
Mas 17 era um número grande para um grupo de kirins, e eu estava prestes a dizer isso quando Grace falou.
— Dizimamos dois grupos, arrisco dizer. — Grace tinha guardado o alicórnio conquistado e inspecionava a espada em busca de lascas. — Ou os remanescentes de dois grupos. Aposto que o unicórnio com chifre quebrado de Ilesha era um macho alfa banido.
— Era fêmea — disse Ilesha. — E acho que eles não têm alfas como as matilhas.
— Não sabemos o que têm, sabemos, Cory? — observou Grace. Cory deixou os ombros penderem ainda mais.
— Não vejo você fazendo pesquisa alguma! — acusei Grace bruscamente.
— E eu não vejo ela matando unicórnio algum — respondeu Grace no mesmo tom. — E, se você ficasse em casa em algumas dessas noites, talvez usássemos melhor aquele laboratório em vez de simplesmente comprar tubos de ensaio.
— Desde quando tenho doutorado em farmacologia? — Minhas mãos estavam nos quadris agora, ou, mais precisamente, apoiadas no cabo da faca de alicórnio na bainha presa ao cinto. — Sim, estamos reconstruindo o scriptorium, mas não vamos
simplesmente acordar um dia com o Claustro tendo virado o laboratório da Gordian…
— Graças a Deus por isso - murmurou Ilesha.
— Não temos equipamento nem conhecimento para… — Parei de falar porque sabia que estava parecendo um disco quebrado. Grace era tão precisa com as farpas que soltava como era com um arco e flecha. Sabia exatamente onde me atingir
para fazer doer de verdade.
Restaurar o laboratório-barra-biblioteca destruído no monastério em ruínas tinha sido uma invenção conjunta de Cory e Phil, não minha. Elas decidiram que eu precisava de um projeto para me ajudar a esquecer o que tinha acontecido em
Cerveteri no mês anterior. Como concluíram que montar o equivalente a um laboratório de química de ensino médio poderia compensar a destruição de um laboratório de pesquisas de primeira categoria estava além da minha compreensão. E uma aluna, com aspirações a uma carreira em medicina, que abandonou o ensino médio, jamais conseguiria imitar as habilidades do homem que ela permitira ser morto bem na sua frente.
Fechei os olhos por um momento, deixando que a lembrança dominasse a mente, afogando, com amargura e
arrependimento, qualquer resquício do instinto assassino de uma caçadora. Marten Jaeger, o rosto contorcido pela dor quando
o veneno do karkadann entrou em sua corrente sanguínea. Talvez eu pudesse ter impedido, pudesse tê-lo salvado.
Quando voltei à conversa, Cory engatara o discurso retórico a todo vapor.
— Além do mais — ela praticamente gritava com Grace —, até assumir um papel mais ativo nas responsabilidades
administrativas do Claustro, você não tem direito de reclamar das escolhas que fazemos.
Alguma coisa aguçou meus sentidos, e minha mão apertou o cabo da faca.
Cory continuou a gritar, embora eu mal conseguisse compreendê-la acima do sangue me correndo nos ouvidos.
— Nesta Ordem, o valor não é determinado por quantidade, e me ressinto…
Grace sacou a espada, se virou e a enfiou no coração do potro kirin que avançava sobre nós. O monstro desmoronou sobre a lâmina, morto.
Cory ficou paralisada, mas o restante de nós não ficou surpreso. As outras quatro garotas e eu tínhamos puxado nossas armas; todas estávamos agachadas e prontas. As mãos de Cory continuavam vazias, e a boca estava aberta em choque.
Ela não havia sentido? A julgar pelas expressões das outras caçadoras, todas estavam tão curiosas quanto eu.
Grace soltou a lâmina da espada.
— Esse é o sexto desta caçada — disse ela, com tranquilidade. — O que estava mesmo dizendo sobre o quanto é útil?

Alma da Fera Vol.2Onde histórias criam vida. Descubra agora