QUANDO ASTRID PERDE UMA BATALHA INESPERADA

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Encontrei Phil no escritório do don, com pilhas enormes de papel na mesa e o telefone grudado na orelha.
— Pode anotar um recado, então? Sim, Philippa. Um ele, dois pês, e Llewelyn tem dois eles primeiro e depois um. Bem, não, o primeiro pê também está lá. Olhe, não me importa como você soletra meu nome, basta dar o recado. Ordem da Leoa.
Caçadoras de unicórnios, isso mesmo. Sim, estou falando muito sério.
Ela desligou o telefone, soprou forte e sorriu para mim.
— E aí, Asteroide. Já teve um daqueles dias em que você sentiu como se tivesse saído do filme Os caça-fantasmas?
Eu me sentei na cadeira em frente a ela.
— Em Os caça-fantasmas, eles não capturavam os fantasmas e guardavam em um dispositivo que terminava explodindo em cima da cidade toda?
— Tá, esquece a metáfora. — Phil mexeu em algumas das pastas. — Como você está?
Dei de ombros.
— Matei quatro unicórnios esse fim de semana.
Phil fez uma careta.
— Eu não estava pedindo um placar, prima.
É claro que não. Phil estava preocupada desde o começo com o que exatamente significava proteger a humanidade da ameaça de unicórnios assassinos. Onde terminava? Enquanto isso, eu ficava satisfeita em racionalizar os benefícios de matar os unicórnios que colocavam em risco as pessoas de áreas populosas. As caçadoras mataram um kirin que estava
aterrorizando uma fazenda, um bando de zhis que estava caçando em um parquinho de escola de subúrbio, um re’em que vagava nas ruas de Roma. Nunca houve a intenção de que a caçada de unicórnios fosse uma coisa de planejamento a longo
prazo, porque as pessoas que inventaram a Ordem da Leoa séculos atrás não tinham o conceito de preservar outras espécies,
principalmente as perigosas.
E agora me dava conta de que a pessoa que a tinha revivido, Cory Bartoli, também não.
Matar unicórnios podia ser o que fazíamos, mas também tínhamos de elaborar planos para o estágio final. Hoje em dia, as pessoas não podiam caçar espécies até a extinção. Ou não deviam, pelo menos. E era isso que Phil queria garantir.
— Quem era no telefone? — Eu quis saber.
Phil revirou os olhos.
— O estagiário do assistente da secretária assistente do subsecretário do Departamento de Interior.
— Então você está mesmo indo a algum lugar com essa sua cruzada?
— É melhor do que parece, sinceramente.
Só balancei a cabeça.
— Já ocorreu a você que isso não está nos planos deles? Neste exato momento, estão preocupados em deixar os parques seguros. Ainda estão tentando entender por que não podem simplesmente pegar um rifle e atirar em um unicórnio que entra em áreas populosas. Não vão botar em prática um plano de preservação até terem feito estudos sobre o animal que esperam preservar. Essas coisas levam tempo.
Phil sorriu, mas não foi seu sorriso largo e lindo de sempre.
— Bem, tenho um semestre antes que meu técnico de vôlei me substitua na equipe e cancele minha bolsa, então é basicamente agora ou nunca. — Ela mexeu nas coisas sobre a mesa, rearrumou e mudou papéis de uma pilha para a outra. O anel de don brilhou no seu polegar, a pedra cabochão reluzindo como uma gota de sangue fresco. — Tenho quatro meses pra salvar os unicórnios.
Assenti de boca fechada. Talvez fosse uma boa ideia que Cory e Phil coordenassem. Minha colega de quarto provavelmente ficaria meio infeliz ao saber que seus planos de extermínio estavam sendo minados por minha prima e sua busca pela preservação. Uma busca com contas de telefone repletas de interurbanos saindo direito do bolso de Cory.
— Não vai ser fácil — prosseguiu ela, sem olhar nos meus olhos. — Mesmo se eu ainda fosse mágica.
Ouvi um tinido, e Bonegrinder saiu da ala privativa do don com o andar rígido e os olhos ainda meio fechados de sono. O pequeno unicórnio bocejou e mostrou a longa língua cor-de-rosa e os dentes afiados e brancos.
— Vem aqui, amorzinho — disse Phil para a zhi.
Bonegrinder olhou para ela sem dar atenção e então pulou até meu lado da mesa, abaixando-se aos meus pés. Acariciei a cabeça dela atrás do chifre em espiral, e ela baliu com alegria. O anel de don devia manter Bonegrinder dócil na presença de
não caçadoras como Phil e Neil. Mas, ultimamente, a zhi agia mais com tédio do que com submissão em relação ao suposto poder incrível e mágico de controlar unicórnios.
Phil se ocupou das pastas.
— Tive notícias de Neil mais cedo — disse ela. — Ele vai trazer duas novas caçadoras mês que vem.
— Que ótimo! — comentei, enquanto Bonegrinder enfiava a cara no meu colo, para que eu coçasse debaixo dos pelos de seu queixo. Talvez mais útil que treinar caçadoras para vencer a ameaça dos unicórnios seria descobrir o que fazia o anel
funcionar e produzi-lo em massa. Mas ele precisava ser somado a outra parte da magia que ninguém entendia.
— É, precisamos aumentar nosso número, não é mesmo? — Phil prendeu uma mecha do cabelo louro-escuro atrás da orelha. — Estamos morrendo como moscas, sabe.
— Phil — comecei.
Ela me olhou nos olhos.
— Eu estava brincando, Asterisco. Por favor, não me trate como uma boneca de porcelana. Acredite, não sinto falta de matar animais selvagens inocentes que só estão respondendo aos próprios instintos de sobrevivência.
Não, ela não sentiria falta disso. Bonegrinder colocou os cascos da frente nas minhas coxas, e as beiradas duras machucaram minha pele. Eu a empurrei, e ela resmungou, fez beicinho e se deitou ao lado da minha cadeira. Tirei pelos brancos e fofinhos da calça jeans.
Phil fingiu não reparar. Algumas pessoas tinham falado sobre arrumar para minha prima, uma amante dos animais, um gatinho ou algum outro bicho, mas então percebemos que Bonegrinder provavelmente o comeria.
— Como faz as duas coisas de uma vez? — perguntei. — Lutar para tornar a caçada de unicórnios ilegal enquanto lidera uma organização que caça unicórnios?
Ela riu.
— A ironia também já me ocorreu. Mas tudo isso é parte do mesmo objetivo, certo? Queremos manter as pessoas a salvo dos unicórnios. A Ordem faz isso à moda antiga: matando. Mas não temos mais que seguir as antigas regras. Ainda acho que as pessoas são mais importantes, e estou disposta a fazer o que for preciso pra garantir que fiquem em segurança… por enquanto.
Mas acho que podemos encontrar uma maneira de proteger as pessoas que também permita a sobrevivência dos unicórnios.
-Como sua amiga Clothilde. — Ela deu de ombros. — Mas com a força da lei para que desta vez prevaleça.
Eu a olhei com ceticismo. Phil era bem mais otimista que eu.
— Você falou com tia Lilith recentemente? — perguntou Phil.
— Semana passada — respondi. — Ela anda ocupada.
Desde que foi embora do Claustro e voltou aos Estados Unidos, minha mãe iniciou uma nova carreira como consultora de unicórnios. Phil podia não conseguir chamar a atenção do governo, mas os canais de televisão locais estavam mais que animados em mostrar minha bela, loura e discutivelmente especialista mãe em seus programas. O fato de ela pender para a loucura não os incomodava, principalmente quando ela se sentiu vingada de realmente existirem unicórnios assassinos todo esse tempo.
Da segurança dos estúdios de televisão com ar-condicionado e das estações de rádio, minha mãe falava sobre a história e mitologia que passou metade da vida recitando apenas para mim. Parecia corajosa e bem informada, e, se “ex-instrutora chefe de um campo de treinamento de caçadoras de unicórnios” era um pouco equivocado, bem, pelo menos não estava fazendo mal a nossa causa. As mais recentes conversas telefônicas com minha mãe giravam sobre a necessidade de um empresário para lançar um programa nacional, e Grace e Melissende gostavam de se reunir e rir, alto e de um lugar de onde desse para ouvir,
dos vídeos on-line em que minha mãe falava com entusiasmo sobre os supostos dias de glória como implacável caçadora de
unicórnios.
— E tio John? — acrescentei.
— Ainda deixando recados. Mamãe diz que ele precisa de tempo pra entender isso tudo, sei lá. — Phil deu de ombros. — Não consigo decidir se ele está mais furioso porque menti para ele durante todo o verão, por eu estar treinando caçadoras de
unicórnios ou por ele não estar presente pra me proteger.
Estiquei a mão por cima da mesa com a palma para cima para ela segurar.
— Acho que é a última opção.
Ela olhou para minha mão, para os calos da corda do arco nos dedos, para a bolha se formando perto da base do polegar, para as marcas em espiral de alicórnio que sulcavam a palma, e não soltou as pastas.
— Boneca de porcelana, Astroturf.
Retirei a mão.
— Certo.
Ela ficou de pé e se alongou.
— Ok. Que tal um pouco de treino? Quem vencer compra sorvete pra perdedora. — Ela olhou para Bonegrinder, que ainda estava posicionada aos meus pés. — E ela fica. Não vale roubar.
Bonegrinder mostrou os dentes para minha prima.
— Astrid! — gritou Dorcas escada acima. — Giovanni chegou!
Fechei o livro que estava lendo, peguei a bolsa e desci para encontrar meu namorado. Giovanni tinha planejado o encontro de hoje, mas não me disse aonde íamos. Só me mandou usar uma roupa confortável. Por sorte, eu tinha sapatos resistentes em abundância.
Se eu o conhecia, provavelmente íamos a um museu. Ele já me levara à Galeria Borghese, ao Vaticano e a mais igrejas com estátuas de Michelangelo do que eu podia contar. Um dos problemas de namorar um estudante de artes: sempre havia
mais arte a ser vista, principalmente em um lugar como Roma.
É claro que os problemas de namorar uma caçadora de unicórnios eram bem mais óbvios e mortais, então talvez eu não devesse reclamar.
Encontrei Giovanni no pátio da frente observando Ursula desenhar à sombra. A menina de 12 anos tinha começado a desenhar muito recentemente. Melissende, irmã de Ursula, pediu que os pais mandassem lápis papel e um caderno. Phil achava ótimo ela ter um escape que não tivesse nada a ver com caça.
Eu me perguntei o que Phil acharia do tema de Ursula. Ela tinha apoiado o arco e a aljava de flechas na lateral do chafariz.
Natureza morta com armas.
— A água é a parte mais difícil — explicou Ursula, tirando o cabelo escuro do rosto e apertando os olhos em direção ao chafariz. — Como se faz a água?
Giovanni apontou para um ponto no caderno.
— Pense no reflexo. A água vai refletir tudo, principalmente desse ângulo. As penas das flechas, a beirada do arco, o topo do chafariz, o céu…
— Mas tudo deformado — disse Ursula.
— É — respondeu Giovanni. — Então, se não achar deformado o bastante, jogue uma pedra na água e desenhe rápido.
Ursula riu e parou imediatamente quando me viu de pé na porta. Giovanni ergueu o olhar, e sua expressão se anuviou como
sempre acontecia quando ele me via. Eu sorri.
Ursula chegou para o lado.
— Obrigada pela dica — agradeceu ela, sem jeito.
Havia boatos no Claustro de que ela desenvolvera uma paixonite por Giovanni depois que ele a carregou em Cerveteri no mês anterior. Ela foi ferida na batalha com os kirins, e ele tinha sido o único com energia suficiente para pegá-la no colo
depois que ela machucou a perna.
Obviamente, não podia culpá-la pela preferência, mas também não me ressentia dela. Se Giovanni reparava como Ursula ruborizava em sua presença, ou como ela misteriosamente começou a desenhar porque sabia que ele gostava de arte, não falava nada. Assim como o caderno de desenho, a paixonite por Giovanni provavelmente era uma coisa boa para ela.
Sei que a mim ele fazia bem.
— Pra onde está me levando? — perguntei, indo me encontrar com ele.
— Pra um piquenique — anunciou ele, com orgulho. Ursula inclinou a cabeça sobre o desenho.
— Uau, então nada de arte? — Eu quis saber.
— Eu falei isso? Acho que não falei isso.
Coloquei as mãos nos quadris.
— Astrid — disse ele. — Qual foi o último lugar pra onde você me levou?
— Uma batalha com um bando de unicórnios assassinos.
— E que parte do dia era quando me levou até lá?
Suspirei.
— Ao amanhecer.
— E o que aconteceu?
— Os kirins tentaram matar você e conseguiram destruir a van que você pegara emprestado da escola.
— Sem a permissão e o conhecimento de ninguém da escola — acrescentou ele.
— Certo.
— Então por comparação…? — disse ele.
Eu ri.
— Arte é uma alternativa divertida e relaxante.
Ele passou o braço pela minha cintura.
— E é segura. Ninguém nunca morreu por causa de arte.
— Tenho certeza de que existe algum registro de uma estátua que caiu em cima de alguém em alguma época — argumentei.
Ele fingiu considerar o argumento.
— Era uma estátua venenosa determinada a devorar minha carne?
— Não — admiti.
— Ainda venço. Agora vamos, senão perderemos o trem.

Alma da Fera Vol.2Onde histórias criam vida. Descubra agora