A SUPER HOMEM PARTE 3

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Foi num final de tarde de Novembro que tudo aconteceu. Passei por casa para ir buscar o lanche, uma carcaça com manteiga e fiambre antes de seguir para o recinto com o skate debaixo do braço. Estava com uma traça do catano e abocanhei o pão enquanto a humidade se me colava à camisa e à cara, anunciando uma noite fria. Apesar de sentir os penantes latejar, não largava as minhas Nastase. A minha mãe ralhava, que aquilo era uma vergonha, que as sapatilhas estavam rotas; O que as vizinhas haviam de dizer ao verem-me naqueles propósitos mas ela não fazia ideia que um gajo ter umas Adidas Nastase era o caminho certo para cair nas boas graças dos dois grupos mais fixes da escola, os betinhos e os surfistas, sendo que alguns betinhos gostavam de passear pranchas de surf até à praia. Essa proeza extra aumentava-lhes, a possibilidade de beijarem raparigas top top depois da missa. Ser skater também não era mal visto pelas miúdas e como eu não tinha caroço para uma prancha de surf, as minhas Nastase e o meu skate davam-me acesso directo à segunda liga que incluía as filhas de funcionários públicos de alto gabarito. Eu estava habilitado a curtir com as filhas dos funcionários das repartições de finanças, câmara municipal e afins. As filhas dos senhores doutores, dos senhores professores e dos senhores engenheiros não eram para o meu bico. Estava-me a marimbar para isso. O meu coração sangrava pela professora Alexandra. Como é que uma mulher tão delicada e perfumada podia gostar de mulheres. Era um azar do caraças. Quando ela me chamava Steven eu tinha a sensação que a professora me ia convidar para umas aulas particulares em casa dele. É pá, o que eu sonhava com isso. Aliás, era nisso que eu pensava quando cheguei ao recinto e me deparei com a cena. Naquele tempo, a rapaziada andava para trás e para a frente com um rádio gravador que parecia um tijolo prateado e aquilo no recinto do skate era uma rambóia do caneco. Um malhanço ao som dos ACDC ou dos Black Sabbath tinha muito mais estilo, principalmente para as betinhas rebeldes que vinham assistir às nossas manobras às escondidas. Estava a acabar o meu leite com chocolate e ouvia a voz do Ozzie a cantar Paranoid, ao longe. O que eu curtia aquele som, pá (se fosse hoje não ouvia aquilo nem dois minutos). Apercebi-me que havia merda. A malta estava concentrada à volta do "tijolo" e ninguém rolava no ringue. Fiquei do lado de fora do recinto a tentar perceber que raio se passava, até que alguém cortou o pio ao Ozzie. Reconheci a voz soberana e assustadora do "Manú" a ameaçar o Vilaça que lhe espetava a ponta e mola no bucho se não o deixassem levar o "tijolo". O Manú era um gandim de primeira que assombrava os miúdos mais novos lá da escola. Constava que o gajo andava metido na passa e que tinha uma navalha de ponta e mola. Descobri, naquele dia, que a cena da navalha não era trote, o sacana andava armado e tentava fanar o rádio ao desgraçado do Vilaça que era uma jóia de rapaz. Ameaçado pela lábia sanguinária do Manú e pela lâmina afiada da navalha, o Vilaça parecia mais trinca espinhas de tão mirrado e choroso que estava. Eu ouvia o pranto dele. O meu pai mata-me, o meu pai mata-me. E talvez matasse que o Vilaça velho não era bom de se assoar e tinha sentenciado represálias terríveis ao filho caso alguma coisa acontecesse ao tijolo sagrado.

O perfume antecedia-a como se anunciasse a chegada de um ser divino e quando o ambiente se vestia de sândalo, jasmim e flor de lótus era certo que a professora Alexandra estava a chegar. Mas naquele momento de tensão, quase pânico, parecia-me improvável que a minha Musa aparecesse.

Arrepiei-me todo quando senti a voz delicada perguntar-me, Steven o que se passa aqui? Estava mesmo atrás de mim. Ainda hoje estou para saber como consegui reagir tão depressa. É que eu estava em choque com aquilo tudo pá. Por um lado, o bandido a ameaçar os meus amigos com uma navalha e por outro, a mulher dos meus sonhos a sussurrar ao meu ouvido. Dá para acreditar?

É o Manú, quer roubar o gravador do Vilaça, s'tôra.

Foi então que se deu a cena e foi como entrar na quinta dimensão. Eu, do lado de fora da vedação a assistir com a porra do pacote de leite de chocolate vazio na mão.

Aquela mulher pequenina e frágil aproximou-se do meliante como David de Golias e infligiu-lhe uma valente joelhada nas partes que o deitou abaixo. Enquanto o sacana chiava e se contorcia com dores, agarrado aos ditos, a professora Alexandra aconselhou os meus colegas a fugirem dali e pediu com bons modos ao Manú que não voltasse a importunar os alunos dela quando estes praticavam desporto e tentavam impressionar as raparigas. Depois de tal humilhação o gandulo não foi mais visto na cidade. Acho que foi pregar para outra freguesia. Quanto à minha querida professora Alexandra ganhou a alcunha de Super-homem e reforçou a fama de lesbiana. Acabou por sair da cidade que não estava preparada para ela em 1985.

Ao sair do consultório, ainda com a boca dormente da anestesia perguntei à recepcionista, secretária, faz-tudo quanto devia. Não sei se ela percebeu porque sentia-me como se tivesse tido uma trombose e porque ela respondeu com uma pergunta que me pareceu saída de um almanaque de 1985.

Ó Senhor Estêvão, viu quem veio aqui marcar uma consulta? Foi aquela professora, a Super-homem. Não a via há mais de trinta anos. Diz-se que era fufa, lembra-se?


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⏰ Última atualização: Feb 09, 2017 ⏰

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