A Super-homem "Le grand Final"

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Na professora Alexandra tudo era delicado e discreto. Havia um certo pudor nos gestos, na voz e na forma como ela se vestia. Eu gostava de tudo naquela mulher. Dizem que quando nos apaixonamos ficamos cegos e é bem verdade. Hoje, percebo que onde eu via elegância havia escassez de chicha, o que eu considerava roupa discreta era fatiota máscula, indiciadora de preferências pouco consensuais. Arrepiava-me todo sempre que ela me dizia "Hello Steven" com aquele timbre sussurrado. E havia o perfume, sublime. Percebi, muito mais tarde que aquele era o único traço feminino da professora de Inglês. Havia um anúncio da Sumol que eu adaptava à minha realidade, à noite, antes de adormecer. No meu sonho publicitário eu perguntava à professora Xana como se dizia Sumol em Inglês e ela levava-me a jantar fora num restaurante chic em Londres, junto ao Big Ben. Brindávamos com Sumol em copo de cristal. Very Fashion. Os meus colegas não gostavam dela e fui percebendo, com pesar, que quando passava nos corredores, além do perfume primaveril, pairavam boatos venenosos sobre os blazers e as gravatas, os sapatos de atacadores e as calças de ganga apertadas da minha amada. Um dia sem quê nem para quê,( talvez ele tenha percebido que eu defendia sempre a professora de Inglês) o meu colega da banda filarmónica de seu nome Joaquim Sousa chegou-se a mim antes de entrarmos para aula de Inglês e disse:

" Ó Estevão, esquece a professora que ela é fufa."

Eu não sabia o significado da palavra mas no meu íntimo, senti que aquela revelação do Rei da Escarreta, vaticinava um final triste para os meus intentos românticos com a mulher do perfume a jasmim e flor de lótus. Percebi, naquela frase a impossibilidade de beber uma versão inglesa de sumol de flor de laranjeira em Londres com a mulher dos meus sonhos. Sacana do Joaquim. Estive duas semanas sem aparecer nos ensaios da banda. Ele que se amanhasse com o plano de engate das gémeas do clarinete!

Naquele dia, o desgosto foi duplamente doloroso. Na minha ingenuidade, mesmo desconfiando que se podia tratar de vernáculo cabeludo, decidi confrontar os meus velhos com a palavra maldita. A reacção não se fez esperar. Como qualquer pai tradicional, zeloso da moral e dos bons costumes, o meu puxou da culatra atrás e zás, espetou-me uma bofetada que me ia deitando abaixo. Fiquei com a cara a latejar e com a cabeça a mil depois do ralhete...

- Não tens vergonha de dizer essa palavra à frente da tua mãe e da tua irmã? Não voltas a falar dessas porcalhonas cá em casa que isso não são pessoas normais, ouviste?

Confirmei, às custas da minha bochecha, o significado que eu já desconfiava na entoação do Joaquim Sousa. A Professora Alexandra gostava de mulheres. Era o que constava e em 1985 um boato desses era pior do que uma confissão. Dediquei-me ao skate para esquecer o desgosto. Todos os dias, depois das aulas, passava por casa, ouvia o sermão da minha mãe e da minha avó sobre a importância de manter a integridade das calças de ganga e dos casacos, pegava no meu skate e ia para a "parada" treinar as manobras. Palavra de honra, não fazia de propósito mas não havia dia que eu não me estatelasse no chão e ocasionalmente, confesso, as calças sofriam amassos e rasgões.

Foi num final de tarde de Novembro que tudo aconteceu. Passei por casa para ir buscar o lanche, uma carcaça com manteiga e fiambre antes de seguir para o recinto com o skate debaixo do braço. Estava com uma traça do catano e abocanhei o pão enquanto a humidade se me colava à camisa e à cara, anunciando uma noite fria. Apesar de sentir os penantes latejar, não largava as minhas Nastase. A minha mãe ralhava, que aquilo era uma vergonha, que as sapatilhas estavam rotas; O que as vizinhas haviam de dizer ao verem-me naqueles propósitos mas ela não fazia ideia que um gajo ter umas Adidas Nastase era o caminho certo para cair nas boas graças dos dois grupos mais fixes da escola, os betinhos e os surfistas, sendo que alguns betinhos gostavam de passear pranchas de surf até à praia. Essa proeza extra aumentava-lhes, a possibilidade de beijarem raparigas top top depois da missa. Ser skater também não era mal visto pelas miúdas e como eu não tinha caroço para uma prancha de surf, as minhas Nastase e o meu skate davam-me acesso directo à segunda liga que incluía as filhas de funcionários públicos de alto gabarito. Eu estava habilitado a curtir com as filhas dos funcionários das repartições de finanças, câmara municipal e afins. As filhas dos senhores doutores, dos senhores professores e dos senhores engenheiros não eram para o meu bico. Estava-me a marimbar para isso. O meu coração sangrava pela professora Alexandra. Como é que uma mulher tão delicada e perfumada podia gostar de mulheres. Era um azar do caraças. Quando ela me chamava Steven eu tinha a sensação que a professora me ia convidar para umas aulas particulares em casa dele. É pá, o que eu sonhava com isso. Aliás, era nisso que eu pensava quando cheguei ao recinto e me deparei com a cena. Naquele tempo, a rapaziada andava para trás e para a frente com um rádio gravador que parecia um tijolo prateado e aquilo no recinto do skate era uma rambóia do caneco. Um malhanço ao som dos ACDC ou dos Black Sabbath tinha muito mais estilo, principalmente para as betinhas rebeldes que vinham assistir às nossas manobras às escondidas. Estava a acabar o meu leite com chocolate e ouvia a voz do Ozzie a cantar Paranoid, ao longe. O que eu curtia aquele som, pá (se fosse hoje não ouvia aquilo nem dois minutos). Apercebi-me que havia merda. A malta estava concentrada à volta do "tijolo" e ninguém rolava no ringue. Fiquei do lado de fora do recinto a tentar perceber que raio se passava, até que alguém cortou o pio ao Ozzie. Reconheci a voz soberana e assustadora do "Manú" a ameaçar o Vilaça que lhe espetava a ponta e mola no bucho se não o deixassem levar o "tijolo". O Manú era um gandim de primeira que assombrava os miúdos mais novos lá da escola. Constava que o gajo andava metido na passa e que tinha uma navalha de ponta e mola. Descobri, naquele dia, que a cena da navalha não era trote, o sacana andava armado e tentava fanar o rádio ao desgraçado do Vilaça que era uma jóia de rapaz. Ameaçado pela lábia sanguinária do Manú e pela lâmina afiada da navalha, o Vilaça parecia mais trinca espinhas de tão mirrado e choroso que estava. Eu ouvia o pranto dele. O meu pai mata-me, o meu pai mata-me. E talvez matasse que o Vilaça velho não era bom de se assoar e tinha sentenciado represálias terríveis ao filho caso alguma coisa acontecesse ao tijolo sagrado.

O perfume antecedia-a como se anunciasse a chegada de um ser divino e quando o ambiente se vestia de sândalo, jasmim e flor de lótus era certo que a professora Alexandra estava a chegar. Mas naquele momento de tensão, quase pânico, parecia-me improvável que a minha Musa aparecesse.

Arrepiei-me todo quando senti a voz delicada perguntar-me, Steven o que se passa aqui? Estava mesmo atrás de mim. Ainda hoje estou para saber como consegui reagir tão depressa. É que eu estava em choque com aquilo tudo pá. Por um lado, o bandido a ameaçar os meus amigos com uma navalha e por outro, a mulher dos meus sonhos a sussurrar ao meu ouvido. Dá para acreditar?

É o Manú, quer roubar o gravador do Vilaça, s'tôra.

Foi então que se deu a cena e foi como entrar na quinta dimensão. Eu, do lado de fora da vedação a assistir com a porra do pacote de leite de chocolate vazio na mão.

Aquela mulher pequenina e frágil aproximou-se do meliante como David de Golias e infligiu-lhe uma valente joelhada nas partes que o deitou abaixo. Enquanto o sacana chiava e se contorcia com dores, agarrado aos ditos, a professora Alexandra aconselhou os meus colegas a fugirem dali e pediu com bons modos ao Manú que não voltasse a importunar os alunos dela quando estes praticavam desporto e tentavam impressionar as raparigas. Depois de tal humilhação o gandulo não foi mais visto na cidade. Acho que foi pregar para outra freguesia. Quanto à minha querida professora Alexandra ganhou a alcunha de Super-homem e reforçou a fama de lesbiana. Acabou por sair da cidade que não estava preparada para ela em 1985.

Ao sair do consultório, ainda com a boca dormente da anestesia perguntei à recepcionista, secretária, faz-tudo quanto devia. Não sei se ela percebeu porque sentia-me como se tivesse tido uma trombose e porque ela respondeu com uma pergunta que me pareceu saída de um almanaque de 1985.

Ó Senhor Estêvão, viu quem veio aqui marcar uma consulta? Foi aquela professora, a Super-homem. Não a via há mais de trinta anos. Diz-se que era fufa, lembra-se?


OS HERÓIS CÓMICOS DA MINHA ESCOLAOnde histórias criam vida. Descubra agora