A SERPENTE EMPLUMADA DA LAPA

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A MASSA calcária do Morro ergue-se a noventa metros acima das águas do rio São Francisco.

Abrem-se no bojo escuro, recortado ela paciência da erosão, um palácio misterioso, salas, átrios, coruchéus, pilares, agulhas, miranetes, pias, decorações estranhas, arabescos que fecham as últimas volutas pela projeção impressionante de estalactites.

Aí, em 1691, um português, Francisco Mendonça Mar, pintor, abandonando a cidade do Salvador, atingiu a Lapa, com duzentas léguas de peregrinação e fome, trazendo um crucifixo e uma vontade de eremita.

Fez vida de solitário.

Depois, o ermitão se tornou hospitaleiro da região, abrigando enfermos, consolando doentes, determinando que a imensa Lapa se tornasse centro de convergência demográfica, estimulada pela fé irradiante.

Uma caverna transformou-se em capela, com altar e assento.

Uma lasca de fonolito, percutida, espalhava sonoridades de sino, ajuntando os fiéis.

O culto nasceu e se espalhou, como uma luz suave, por toda a redondeza.
Francisco Mendonça Mar ordenou-se padre em 1706, tomando o nome de

Francisco da Soledade, e morreu depois de 1722.

Em época de romaria, dez mil devotos enxameiam ao redor do Morro, cantando, orando, confiando na Justiça Divina.

Logo à entrada da gruta, onde Mendonça Mar semeou a futura capela, está o altar-mor, feito há milênios, como disse Frei José de Santa Rita Durão no canto XIV do seu "Caramuru":

Eis aqui preparado (disse) o templo, Falta a fé, falta o culto necessário; E quando era de Deus feito contemplo, Tudo o que é de salvar
meio ordinário. Desta intenção parece ser exemplo Este insigne prodígio extraordinário, Onde parece que no templo oculto Tem disposto o lugar, e espera
o culto.

A esquerda está a Cova da Serpente, sempre fechada e temida, até 1936.

Aí vivia uma serpente emplumada como Quetzalcoatl, agitando sem cessar, para crescer depressa, duas asas robustas.

Quando a serpente deixasse a cova, devoraria a todos sem remissão.

Muita gente ouvia-lhe o ronco cavernoso e ameaçador, avisando o perigo fatal e terrível.

Frei Clemente, em fins do século XVIII, chegou à gruta e iniciou as Santas Missões; reconheceu o canto onde a serpente alada pre- parava o vôo mortal para a população assombrada; aconselhou que todos rezassem o "Ofício de Nossa Senhora": cada vez que a oração findasse, uma pena cairia da serpente, sem esperança de substituição, arrancada pelo poder da súplica.

Milhares de orações, em todo o rio São Francisco, subiram para o céu. Uma a uma, aos milhares, as penas da serpente foram caindo, caindo, como folhas duma árvore morta.

Desplumada, inofensiva, derrotada, a serpente morreu de furor.

Ao abrir-se a cova fabulosa, não se encontrou vestígio de seu corpo.

Ainda hoje, quem visita a Lapa do Bom Jesus, à margem direita do São Francisco, verá a entrada da cova onde a serpente emplumada viveu para matar, e desapareceu, vencida pelo "Ofício de Nossa Senhora".

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