O NEGRINHO PASTOREIRO

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NAQUELE TEMPO os campos ainda eram abertos, não havia entre eles nem divisas nem cercas; somente nas volteadas se apanhava o gado chucro, e os veados e os avestruzes corriam sem empecilhos.

Era uma vez um estancieiro, que tinha uma ponta de surrões cheios de onças e meias doblas e mais muita prataria; porém era muito cauíla e muito mau, muito.

Não dava pousada a ninguém, não emprestava um cavalo a um andante, no inverno o fogo da sua casa não fazia brasas; as geadas e o minuano podiam entanguir gente, que a sua porta não se abria; no verão a sombra dos seus umbus só abrigava os cachorros; e ninguém de fora bebia água das suas cacimbas.

Mas também quando tinha serviço na estância, ninguém vinha de vontade dar-lhe um ajutório; e a campeirada folheira não gostava de conchavar-se com ele, porque o homem só dava para comer um churrasco de tourito magro, farinha grossa e erva caúna e nem um naco de fumo... e tudo, debaixo de tanta somiticaria e choradeira, que parecia que era o seu próprio couro que ele estava lon- queando...

Só para três viventes ele olhava nos olhos: era para o filho, menino cargoso como uma mosca, para um baio cabosnegros, que era o seu parelheiro de confiança, e para um escravo, pequeno ainda, muito bonitinho e preto como carvão, e a quem todos chamavam somente o Negrinho.

A este não deram padrinhos nem nome; por isso o Negrinho se dizia afilhado da Virgem, Senhora Nossa que é a madrinha de quem não a tem.

Todas as madrugadas o Negrinho galopeava o parelheiro baio; depois conduzia os avios do chimarrão e à tarde sofria os maus-tratos do menino, que o judiava e se ria.

Um dia, depois de muitas negaças, o estancieiro atou carreira com um seu vizinho. Este queria que a parada fosse para os pobres; o outro que não, que não!, que a parada devia ser do dono do cavalo que ganhasse. E trataram: o tiro era trinta quadras, a parada, mil onças de ouro.

No dia aprazado, na cancha da carreira havia gente como em festa de santo grande.

Entre os dois parelheiros a gauchada não sabia decidir, tão perfeito era e bem lançado cada um dos animais. Do baio era fama que quando corria, corria tanto, que o vento assobiava-lhe nas crinas; tanto, que só se ouvia o banilho mas não se lhe viam as patas baterem no chão... E do mouro era voz que quanto mais cancha, mais agüente, e que desde a largada ele ia ser como um laço que se arrebenta.

As parcerias abriram as guaiacas, e aí no mais já se apostavam aperos contra rebanhos e redomões contra lenços.

- Pelo baio! Luz e doble!...

- Pelo mouro! Doble e luz!...

Os corredores fizeram as suas partidas à vontade e depois às obrigadas; e quando foi na última, fizeram ambos a sua senha e se convidaram. E amagando o corpo, de rebenque no ar, largaram, os parelheiros meneando cascos, que parecia uma tormenta...

- Empate! Empate!, gritavam os aficionados ao longo da cancha por onde passava a parelha veloz, compassada como numa colhera.

- Valha-me a Virgem Madrinha, Nossa Senhora!, gemia o Negrinho. Se o sete léguas perde,
o meu senhor me mata! Hip-hip-hip!...

E baixava o rebenque, cobrindo a marca do baio.

- Se o corta-vento ganhar é só para os pobres!... retrucava o outro corredor. Hip-hip!

E cerrava as esporas no mouro.

Mas os fletes corriam, compassados como numa colhera. Quando foi na última quadra, o mouro vinha arrematado e o baio vinha aos tirões... mas sempre juntos, sempre emparelhados.

E a duas braças da raia, quase em cima do laço, o baio assentou de sopetão, pôs-se em pé e fez uma cara-volta, de modo que deu ao mouro tempo mais que preciso para passar, ganhando de luz aberta! E o Negrinho, de um pêlo, agarrou-se como um ginetaço.

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