Capítulo 1

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                                                                    "Lemmy"

     Espio pela janela o carro dos novos moradores estacionar do outro lado da rua.  O sol de fim de tarde me faz estreitar os olhos para algum lugar além daquele asfalto sujo e empoeirado.

Um homem alto e grisalho, sai carregando uma mala na mão direita. Quando  está a alguns centímetros de onde estava,  ele interrompe seus passos e olha por cima do ombro, como se esperasse ver algo atrás de si.

Após alguns segundos, se aproxima da porta de trás do carro e se debruça sobre o vidro aberto. Parece estar falando com alguém que não consigo ver, até uma garota magrela e de cabelos loiros, desembarcar do carro.

     Ela parece discutir com o homem, com seus braços gesticulando no ar e a voz alterada, é como se não quisesse estar onde realmente está. Não posso entender ao certo o que ela está dizendo, até parar de frente para a casa e cruzar os braços. Teria ela me visto...Não, ninguém nunca me vê.

     Finalmente os vejo sumir da minha vista. A porta do andar de baixo range e, vozes e passos invadem o silêncio de quase três meses.

     Alguém está subindo as escadas. 

    Hora de me esconder.

                                                     

                                                                         "Jordana"


    Minha mente vagueia nas primeiras notas de Stairway  to Heaven, quando sinto que o solavanco do carro diminui. Olho pela janela e vejo meu terceiro lar em seis meses, é como na foto do anúncio imobiliário : Porão, térreo, segundo andar e...Sótão. Nunca gostei de sótãos, não depois do que aconteceu.

 Ouço passos e vejo meu pai debruçado sobre a janela do carro, me encarando com seus olhos grandes demais para sua cabeça minúscula. Por um tempo, simplesmente devolvo seu olhar, os fones ainda no ouvido, mas sinto como se seus olhos perfurassem meu crânio e chegassem nos fundos da minha mente, onde guardo meus pensamentos sombrios. 
Saio do carro, antes que aquilo se torne ainda mais incômodo.
                                     
--- Vai ser legal, novas pessoas, novos lugares...--- Ele tenta me animar, com sua voz em falso encorajamento --- A tinta está um pouco desbotada --- Diz, fazendo um aceno com a cabeça em direção a casa --- Mas podemos pinta-lá no verão e...

--- A quem você quer enganar, papai ? Não vamos ficar aqui nem o suficiente  para trocarmos uma fechadura. Verão... --- Falo, enquanto reviro os olhos.

Hesito por um momento, "me recuso a entrar, estou farta disto". Queria poder ser ouvida por alguém, mas ninguém liga para o que eu quero.

--- Eu sei que é díficil para você, mas sabe que se quisermos continuar vivos, teremos que nos adaptar. Do contrário, "Ele"...

--- "Ele", sempre ele. Quem é "Ele", afinal ? --- O encaro por um tempo, mas nunca fui boa na arte da intimidação --- Por que não me diz, eu tenho o direito de saber. --- Ele abre a boca como se fosse dizer algo, mas simplesmente dá de ombros e caminha em direção a varanda.

Por um tempo, fico parada e de braços cruzados em frente à casa, encarando a vidraçaria suja e desgasta das janelas.

--- É por pouco tempo, sabe disso --- Meu pai diz, alto o suficiente para que eu possa ouvir e, abre a porta, novamente me carregando junto a si, rumo ao desconhecido.

O cheiro de môfo invade minhas narinas. A entrada está escura o suficiente para me forçar a tatear a parede em busca de um interruptor, embora o sol ainda não tenha se posto por completo. Percorro meus olhos pelo interior da casa, um tanto embaçados pela claridade da luz.

Uma parede vazia, que não pretendo preencher com fotos de família, desliza para o andar de cima, juntamente com uma escada velha de madeira.

Um som oco se propaga pelo ambiente, logo que avanço o primeiro degrau. Olho para baixo e noto algo que não havia visto ao entrar na casa.  No pé da escada, há uma mancha escura, de um marrom opaco. Parece estar ali há muito tempo.

Tento ignorar a mancha e continuo subindo os degraus...Espero que aquilo seja café.

O andar de cima me dá calafrios. Não há nada além de portas, um corredor estreito e uma pequena janela à minha esquerda.

Caminho alguns passos em direção ao que acredito ser o meu quarto. Penso em como minha vida sempre foi tão diferente da vida da maioria das pessoas normais e, em como as coisas mudaram nos últimos tempos. Lágrimas se acumulam em um canto inalcançável dos meus olhos e, antes que elas caiam e se transformem em um terrível tsunami, eu abro a porta.

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