Parte I

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Parte I - Nathan

— Vamos lá, Nathan. Abstraia. É apenas uma briga de casal. Apenas uma briga normal de casal – eu suspiro e jogo os braços por cima dos meus olhos, em uma tentativa vã de bloquear os feixes de luz que entram pelas cortinas da janela do quarto. Quando eu percebo que os braços não farão o trabalho completo, eu bufo e agarro o travesseiro embaixo da minha cabeça, jogando-o sobre a minha cara.

Deus, eu só quero dormir.

É pedir muito?

Eu carreguei caixas o dia todo. Desembalei coisas, guardei roupas, fiz uma faxina que deixaria minha mãe orgulhosa.

Eu tô morto porra. Eu só quero dormir.

Mas ao que tudo indica, a tarefa se tornou impossível quando meus vizinhos do andar debaixo resolveram brigar. Não, brigar não. Quando eles resolveram estourar a terceira guerra mundial lá embaixo. Há tantos gritos, palavrões e coisas sendo quebradas que é humanamente impossível pregar os olhos, mesmo alguém como eu, que está só o pó.

Lizz, para porra! Você tá quebrando tudo mulher doida! – ouço o cara gritar enquanto a tal Lizz (que eu nem conheço, mas já odeio pra caramba) arremessa algo que pelo barulho, se despedaça por completo na parede.

Povo doido.

Depois de muitos gritos, estilhaços e maldições, ouço a porta sendo brutalmente fechada, enquanto a tal Lizz (que eu já detesto mais do que chuchu) bate freneticamente contra ela, chorando e exigindo voltar para dentro.

Mas isso não acontece.

Eu não ouço a porta abrir novamente.

Não ouço gritos.

Não ouço palavrões.

Eu só ouço o que eu menos queria ouvir.

Eu só ouço o completo silêncio por um bom tempo seguido pelo choro da tal Lizz, logo depois.

Um choro alto, desesperado e muito, muito triste.

— Para de pensar nisso, Nathan. Isso não é problema seu. Você não conhece essa guria. Você só precisa descansar. – eu tento enfiar todos esses pensamentos em minha cabeça, mas aquele ímpeto de bom moço misturado com o choro dolorido que entra por meus ouvidos me faz ter certeza que uma hora ou outra, eu vou sair daqui e ir ver se ela precisa de algo.

Obrigada mãe. Às vezes eu te odeio por ter me criado assim.

Após minutos me xingando mentalmente e tentando abstrair o que acontecia lá embaixo e que não era problema meu, eu desisti de tentar lutar contra mim e me levantei. Olhei no relógio e surpreso, percebi que já era madrugada.

Como alguém ainda não chamou o síndico?

Procuro o short que está caído em algum canto do quarto, e quando o encontro, o puxo sobre minhas boxers. Calço um chinelo, e enfio uma camiseta de qualquer jeito, indo em direção à porta, completamente descabelado e mau humorado. Algo me dizia para voltar para cama, mas eu insisti em desobedecer e ir em frente.

Até hoje não sei se foi a melhor ou a pior coisa que eu fiz na vida.

Quando chego enfim ao andar debaixo, o elevador se abre e eu consigo ter a real dimensão do que está acontecendo. Há roupas e outras coisas espalhadas por todo o corredor, como se tivessem sido arremessadas. Encostada na porta, uma figura loira e magra está com o rosto escondido entre os braços, enquanto soluça alto. Seu cabelo é raspado de um lado, e seus braços estão cobertos de tatuagens coloridas.

Suspiro fundo e finalmente pergunto:

— Ei, moça. Você está bem? – quando ela ergue os olhos para mim, vejo duas piscinas azuis me encarando, com maquiagem preta e borrada escorrendo por todo o rosto. A dor em seu semblante é palpável e por um momento meu coração se contorce. A briga havia sido realmente feia.

— Eu pareço bem para você? – ela questiona em um tom rude, quase sarcástico. Toda a condolência que eu senti até agora se esvai em um segundo. Que menina grossa.

— E pensar que eu sai da minha cama às três da manhã para te ajudar. Puta que pariu, quando eu vou aprender? –resmungo e dou meia volta, pronto para entrar no elevador novamente. Ela se põe de pé em um pulo, e agarra meu braço, desesperada.

— Não, espera! Desculpa! Eu achei que você fosse só mais um para bisbilhotar. – ela engole em seco e não me solta de seu aperto. Olho para suas mãos, com as unhas pintadas de vermelho e me permito olhar mais atentamente para seu rosto. Ela era linda, mas havia uma dor por trás de seus olhos quase tangível — Eu não quis ser grossa.

— Pois foi – eu respondo ríspido e me solto de sua mão, que ela enfia rapidamente dentro do bolso, em uma posição quase desconfortável. De repente me sinto mal por ser um pouco responsável por isso. — Tudo bem, me perdoa. É que eu tô irritado. Tô cansado, com sono, quebrado... Mas não consegui dormir com você chorando. Eu não suporto ver mulher triste.

Um pequeno sorriso surge em seu rosto, e meu Deus, que dentes maravilhosos. Eu sei que pareço um psicopata analisando dentes às três da manhã, mas puta merda.

Ela tinha um sorriso perfeito.

Um sorriso que iluminaria esse corredor escuro por completo.

— Pode voltar a deitar. Prometo não chorar mais tão alto – ela tenta fazer piada, mas seus olhos marejados e seu rosto borrado de maquiagem entregam que a situação é pior do que ela realmente quer demonstrar que é.

Suspiro e passo as duas mãos pelo rosto.

— Ele não quer te deixar voltar? – eu pergunto o óbvio e ela olha para o lado, magoada. — Por que se o apê for seu também, ele tem que te deixar entrar e...

— Não, o apê não é meu. É só dele – ela ri, mas sem qualquer humor — Ele deixou claro isso quando jogou todas as minhas coisas porta a fora. É um babaca. Não sei como aguentei tanto tempo...

Penso bem e decido fazer por ela a única coisa que eu poderia fazer no momento.

— Você precisa de uma carona? Não tem mais ônibus esse horário e pegar um táxi é meio arriscado...  – eu tiro a chave do carro do bolso, que por sorte eu havia esquecido lá - Você sabe, para ir para algum lugar...

E quando eu acho que a situação vai melhorar, ela começa a chorar novamente. Oh Meu Deus, o que tá rolando?

— Eu não tenho para onde ir.

— Como assim?

— Não tendo. Eu não tenho para onde ir. Eu virei as costas para a minha família para morar com esse traste. Eles estão em outra cidade, fingindo que eu morri – ela puxa os cabelos com os dedos, levando todos os fios para trás em sinal de desespero, como se só agora se desse conta de sua real(e fodida) situação — Eu tô perdida, de verdade. Merda, eu tô perdida.

Bondoso Deus, me mate agora.

Me mate antes que eu faça o que estou pensando em fazer.

Isso não pode estar acontecendo comigo. Eu tenho que estar sonhando.

Eu me belisco, e diante do ardor em meu braço, eu constato que não. Eu não estou sonhando. Eu estou bem acordado, cheinho de ideias tortas rondando minha mente.

— Tudo bem, vamos recolher suas coisas – eu digo, e abaixo, pegando peças de roupas e sapatos aleatórios. Quando ela não entende, eu ergo os olhos e completo — Eu tô morto e não vou descansar sabendo que você tá por aí, de noite, sem rumo. Você pode ficar em casa por hoje.

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Um problema chamado Lizz [COMPLETO]Onde histórias criam vida. Descubra agora