PRIMEIRO DIA

17 3 1
                                    

Naquelas noites de verão e lua cheia, nem era preciso acender as lamparinas para ter o quarto iluminado, o luar estendia seus braços janela á dentro, e as estrelas distraiam os olhos sempre atentos do pequeno Vladmir. Como fora combinado com o gato Lúcius, ele não havia contado a ninguém sobre o seu diário mágico, apenas as corujas, os vaga-lumes e os morcegos ouviam agora em sussurros, a sua confissão.

Vladmir hesitou se arrependeu, se deslumbrou, ficou eufórico, ficou temeroso, sentiu de tudo no decorrer daquele dia, após a estranha revelação de Zézin, seu gatinho de estimação, que se apresentara então como Lúcius, falando pelos cotovelos feito gente grande. Depois de ouvi-lo falar, quem duvidaria mesmo que o diário encontrado no fundo daquele poço não fosse de fato realizar os seus desejos, conforme o que ele escrevesse para o dia seguinte? Então era só começar, mas começar por onde? Será que precisava descrever cada momento do seu dia, ou poderia se ater apenas as coisas mais importantes? Na dúvida, o menino decidiu começar pelo começo.

Nova Colina, 27 de janeiro de 1858.

Querido, e sinistro diário, amanhã é sexta-feira, apesar de eu não gostar de levantar cedo, amanhã vou acordar junto com as galinhas, porque quero aproveitar esse primeiro dia em que a coisas vão acontecer como estou escrevendo aqui, então, me faça acordar bem disposto pra que eu não sinta sono nem preguiça, e não queira voltar a dormir como todos os dias. Minha mãe já vai estar na cozinha, já vai ter tirado o leite da Zilú, e também já vai ter feito aquele bolo de laranja que eu adoro. O pai vai estar de bom humor, coisa que há muito tempo não acontece por aqui, e lá pelas oito horas da manha, um homem estranho, em uma carruagem puxada por pôneis encantados, vai parar na nossa porteira, vai chamar meu pai e entregar a ele uma grande mala cheia de dinheiro. O homem sorrirá para o meu pai e partirá em sua carruagem para sempre, meu pai vai ficar tão feliz que vai jogar tudo para o alto e fazer chuva de dinheiro em nossa sala.

Quero muito que a Esthér seja minha namorada, mas ainda preciso me preparar para esse grande acontecimento, por isso, como vamos passar o resto do dia comemorando o fato de termos ficado ricos, meus pais não me mandarão para a escola amanhã, nós iremos para a cidade e faremos muitas compras, compraremos roupas novas, porque quero estar bonito para a Esthér na segunda-feira. Assim vai ser o meu dia de amanha, ouviu diário? E vê se faz tudo bem direitinho do jeito que eu falei, porque amanhã, eu quero que seja um dia perfeito!

Vladmir abriu os olhos na cama ás cinco em ponto, levantando-se num solavanco como se tivesse dormido por vinte e quatro horas seguidas. O cheiro do bolo de laranja já se espalhava pela casa perfumando toda a extensão do corredor, sobre a mesa, o leite ainda morno, vindo direto dos ubres de Zilú, não lhe deixava qualquer dúvida, tudo estava acontecendo exatamente como ele escrevera no diário.

— Bom dia meu filho! — Recebeu-lhe o pai sorridente, tomando uma xícara de café.

Agora era só esperar para ver o estranho na carruagem encantada, trazendo a mala de dinheiro para entregar a sua família. E assim aconteceu. Ás oito horas da manhã, o menino gritou:

— Pai! Tem um homem chegando na porteira.

E lá foi seu pai recebê-lo, sem imaginar o que estava por vir. A festa não demorou a acontecer, toda a família estava eufórica, mais, na bagunça da chuva de dinheiro, dona Marília sentiu-se mal e se sentou na poltrona, reclamando:

— Nossa..., fiquei tonta! Aquele tombo me deu uma tremenda dor de cabeça.

— Que tombo? — Perguntou José, pai do menino.

— Acho que fui tirar o leite muito cedo hoje, a Zilú se assustou comigo e me deu uma patada. Caí de mau jeito pra trás e bati com a cabeça em uma pedra, agora estou com essa dor de cabeça insuportável.

Seu José estava eufórico de mais para dar atenção às reclamações de Marília, e o pequeno Vlad, mal cabia em si mesmo de tanta felicidade. Eles se arrumaram, subiram na velha charrete e foram às compras, havia dívidas da família a serem quitadas e muitos desejos de consumo reprimidos pela escassez financeira em que viveram por tantos anos, seu José estava ansioso para contar a novidade aos amigos metidos a besta, que sempre faziam dele empregado, oferecendo migalhas em troca de serviços brutos de toda natureza, agora era a sua vez de lhes dar o troco.

Eles passaram na venda onde seu José encontrava-se com os amigos todos os dias para tomar aquela branquinha depois da labuta, anunciando aos quatro ventos o presente inesperado, recebido do tal estranho, alguns amigos verdadeiros festaram com eles, outros, invejosos, trataram logo de levantar desconfiança sobre a origem do dinheiro.

— Eu não sei não... — Cochicharam. — Essa história está muito mal contada! — Disse um deles.

— Você acha que o Zé anda metido com coisa errada? — Perguntou o outro.

— Não sei, mas ouvi dizer que, hoje de manhã, um homem roubou um banco lá na capital e que tinha fugido aqui pra esses lados.

— Será que foi o Zé?

— Pode ter sido algum comparsa dele, algum parente ou coisa assim, vai saber né? Não é coincidência de mais, ele aparecer rico assim de uma hora pra outra?

— Tem toda razão. Acho melhor a gente avisar o delegado, se o Zé não deve nada, não vai ter problema, mas se andou aprontando, não vai sair impune dessa safadeza.

Vladmir e seus pais foram enfim as compras, mas entre uma modista e outra, Dona Marília sentiu-se mal, caiu desmaiada, e eles tiveram que correr ás pressas para o consultório médico do doutor Pascoal. Enquanto colocavam a mulher na maca para ser levada pra dentro, o delegado abordou seu José, ele estava com dois guardinhas e foi logo o algemando.

— Seu José, o senhor está preso!

— Preso? Mas por quê?

— O senhor está sob suspeita de ser cúmplice de um assaltante de bancos. Vai ter que esperar lá na delegacia a chegada do delegado da capital, responsável pelo caso, ele está vindo para cá nesse momento para lhe fazer algumas perguntas.

— Mas eu não fiz nada, nem sei do que estão falando! Não estão vendo a minha mulher doente? Tenho que ficar com ela.

— Isso o senhor vai ter que explicar pra polícia nacional. Agora vamos. Eu não tenho o dia todo. Se o senhor resistir à prisão será bem pior!

— O que ta acontecendo pai? Não me deixe aqui sozinho! — Suplicou Vladmir já aos prantos, vendo toda aquela confusão.

— Fique ai meu filho, fique com a sua mãe. O pai só vai conversar com a polícia e logo volta pra pegar vocês e irmos pra casa. Fique ai. Não saia daí!

Vladmir estava desolado, em poucos minutos seu sonho de um dia perfeito havia se transformado em um pesadelo. O doutor Pascoal saiu da sala de atendimento com uma expressão transtornada:

— Você tem que ser forte agora meu rapazinho. Infelizmente eu não pude fazer nada pela sua mãe, ela acaba de falecer.

— Aquele diário maldito! Não foi nada disso que eu pedi! — Gritou o menino, correndo rua á fora. Ele correu até a exaustão e depois andou e andou, seguindo a pé para casa, pois precisava ter o diário nas mãos e tentar concertar toda aquela tragédia.

— Amanhã será um dia melhor. Amanhã será um dia melhor! — Repetia-se Vladmir, sentindo-se culpado pelo que aconteceu com seus pais.

O DIÁRIO DO FUTUROOnde histórias criam vida. Descubra agora