Vladmir levantou-se afoito, andou até a janela do seu quarto e observando a pequena horta no quintal, a que sua mãe cultivava com tanto carinho, voltou os seus pequenos olhos marejados á Antrako, em uma súplica que faria ceder até as almas mais perversas do limbo:
— Leve o seu diário de volta, eu não quero mais nada disso, só quero que me devolva a minha mãe, por favor!
— Presumo que isso não seja possível meu rapaz. Nem uma coisa, nem outra. O Diário não pode mais sair das suas mãos, agora você tem uma relação inquebrável com este objeto mágico, ele vai fazer parte de você para sempre.
— Mas, e a minha mãe?
— Sinto em informá-lo que o seu poder limita-se á cronologia em sentido horário, qualquer tentativa em mudar o passado causaria um lapso cósmico de proporções devastadoras para o seu mundo. O que aconteceu ontem você não pode mudar, apenas pode evitar amanhã, que algo de ruim aconteça depois de amanhã, e assim prolongar a sua própria vida, que ainda é perecível.
— Então essa porcaria não serve pra nada. Minha mãe está morta mesmo, e vai continuar morta pra sempre? Saia daqui! Eu não quero mais escutar coisa nenhuma!
— Vamos com calma, garoto. Eu não tenho culpa do que aconteceu! Sei o quanto você está triste agora, mas, se você não me escutar, vai acabar fazendo besteiras ainda maiores e pode ferir outras pessoas que você ama.
— Eu já feri. O que você acha que o meu pai vai sentir quando souber que a minha está morta?
— Eu sei, eu sei. Mas comigo tudo isso passa, garanto que levo embora todas as dores humanas deste mundo, tenho uma coleção enorme delas em um buraco negro a que chamo de porão. — Ironizou Antrako, tentando distrair o menino, mas logo percebeu que de nada adiantou. — Desculpe, sei que não é uma boa hora para brincadeiras.
— Isso foi uma brincadeira? Sinto em informá-lo que você não tem a menor graça! — Retrucou Vladmir.
— Garoto desagradável. Espirituoso! Mas desagradável.
— Vai, diz logo o que eu tenho que fazer então? Posso só parar de escrever no diário? Assim eu não me meto mais em confusão. Prometo que guardo ele pra sempre, e não deixo ninguém tomá-lo de mim, mas eu quero a minha vida normal de volta! — Propôs Vladmir.
— Oras você enlouqueceu? Se não escrever o que quer que aconteça no seu dia seguinte ficará preso na fenda, um lugar terrível onde nem eu mesmo poderia alcançá-lo. Desde os mais altos píncaros celestiais, aos mais peçonhentos limbo das trevas é possível se ouvir o ranger das almas praguejantes, inferindo os seus temores ao vácuo da fenda. Melhor seria queimar nas chamas do purgatório, á recair na bazófia de querer deparar-se com ela. Lá, onde o hoje já foi embora, e o amanhã nunca chegou, é o instante mais gelado de mim. Se eu pudesse defini-lo em minha anatomia, diria que ele fica em algum lugar entre o meu umbigo..., e as minhas partes íntimas.
— Cruz credo, que nojo! Ta falando sério? — Questiona Vladmir, achando graça.
— Isso não é engraçado! Você não imagina o que é ter uma parte sua excomungada pela energia criadora.
— Poxa, tenho problemas bem maiores do que um pequeno espaço entre meu umbigo e minhas partes. Mais então diga Antrako, o que eu devo fazer? O que posso escrever no diário pra diminuir o mal que eu causei pra minha família? Meu pai está na cadeia por minha causa.
— Você pode tirá-lo da cadeia e apagar todas as suspeitas infundadas que recaem sobre ele.
— Posso?
— Sim, você pode. Mas tome muito cuidado, não escreva nada que possa alterar o curso da vida dele, nem de ninguém que você conhece. Entenda que a função do diário é tornar você imortal, e não os outros. Cada pessoa tem o seu próprio tempo aqui na Terra, você, e alguns pouquíssimos escolhidos que receberam o diário mágico, são raríssimas exceções, e isso precisa continuar assim. Se te consola, sua mãe partiria da vida de qualquer modo, você não fez mais que mudar a forma da morte dela e talvez apressar em um ou dois dias a sua passagem. O tempo dela já havia se acabado. Eu sou o seu tempo, e apenas eu sou imortal, o que te torna imortal também. O tempo da sua mãe era mortal, ele acabou, e ela acabou junto com ele.
— Tudo bem, mas isso não é injusto? Todas as pessoas que eu conheço vão morrer e só eu vou ficar vivo. O que vai acontecer? Eu vou continuar sendo uma criança para sempre?
— É claro que não. Nem eu ia querer que você continuasse com esta idade difícil. Você vai crescer sim, vai aprender muitas coisas, vai ganhar experiência de vida e vai aprender a ser mais cauteloso daqui pra frente. Você vai envelhecer sabia?
— Vou?
— Vai! Mas só até os 38 anos. Esta seria a idade normal da sua morte se você não tivesse o diário. Daí pra frente você vai parar de envelhecer e vai levar sua forma para a eternidade dos seus dias.
— Bem, é uma boa idade! Nem novo de mais, nem velho de mais. Acho que a Esthér vai gostar de mim com 38 anos.
— Olha aqui Vladmir, eu espero que você tenha guardado muito bem aquilo que eu falei sobre não mudar o curso da vida das outras pessoas. Se você fizer isso, vai se arrepender amargamente, estamos entendidos?
— Ta, claro! Mas eu ainda posso me casar com ela, não posso?
— Só se for da vontade dela. Você não deve brincar com os sentimentos das pessoas, isso seria nocivo aos seus destinos, tudo tem que fluir naturalmente, ou nada feito!
— E você sabe se eu estou no destino dela?
— Como eu poderia saber? Eu sou o tempo, não um vidente.
— Mas você não é o senhor do destino?
— Sim eu sou, mas do destino da vida, que é sempre o mesmo, a morte. Eu não tenho como determinar o que acontece entre o início e o fim, porque vocês possuem o livre arbítrio, são donos de suas próprias vidas. Nem mesmo Deus sabe ao certo o que vai se passar com vocês, vocês humanos são seres complexos de mais, até pra ele. — Concluiu Antrako.
— Já é tarde, tenho que escrever o amanhã. Você vai me ajudar? — Perguntou Vladmir.
— Você não entendeu uma palavra do que eu disse, não foi? É claro que eu não vou ajudar. Não posso! Você é o senhor da sua própria vida, tem que fazer isso sozinho. Minha função é apenas te orientar, o resto é contigo. Apenas não esqueça que você não pode fazer nada que altere vidas alheias, escreva o que quiser desde que as alterações mais importantes digam respeito apenas á você. Agora tire o pendente do pescoço, eu preciso ir.
— E como eu faço pra falar com você de novo se eu precisar?
— É você é mesmo um boçal! Não é óbvio que basta colocar o pendente de volta ao pescoço? Seu sonso!
— A sim, eu já sabia. Só queria confirmar a informação.
— Vamos, tire logo. Não agüento mais ouvir a sua voz!
Vladmir retirou o pendente do pescoço e com o mesmo som assemelhado ás notas de uma harpa angelical, Antrako foi desaparecendo, como uma concentração de pixels que se desfazia no ar, mas antes de sumir completamente ele ainda curvou-se em despedida.
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O DIÁRIO DO FUTURO
FantasyNo século XIX, um menino de Nova Colina, pequena cidade do interior do Paraná, encontra um diário no fundo de um poço, em um quintal abandonado. Logo o menino descobre que o diário é mágico, e que, além de proteger a sua vida, tornando-o imortal, el...