Me chamo Evilásio. Hoje tô aposentado. Não me casei e moro somente com Deus e meu canário-da-terra, numa casinha que consegui construir, à custa de muito sacrifício, perto de Valinhos, onde plantei uns pés de figo. Minha única alegria na vida é o Timão. Fui a muitos jogos depois daquele dia de que nunca mais vou me esquecer nesta vida. Até vi o Coringão ser campeão outras vezes, mas com o tempo eu perdi o gosto de ir. Tá tudo muito caro e também não vale mais a pena, esses jovens de hoje só querem saber de arrumar confusão. Prefiro escutar os jogos e todas as resenhas.
Desde que eu era menino, lá em Catolé do Rocha, no sertão da Paraíba, eu torço pro Corinthians. Lembro que eu via painho ouvindo o rádio de pilha, chorando, todo ano. O Timão chegava perto, e nada de ser campeão. Já fazia mais de dez anos nesse padecimento. Naquela ocasião, nós fugimos da seca e da miséria para tentar uma sorte melhor no Sul. Viemos para Campinas ― tinha uns parentes nossos aqui . Alugamos uma casinha na Vila Brandina, e logo painho arrumou um serviço na construção, enquanto mainha tomava conta de nós e mais minha irmãzinha. O tempo passava, menos a angústia: nada do Corinthians ser campeão. Do nosso lado, as coisas foram apertando e eu precisei ajudar em casa, então eu arrumei um serviço de garçom em um botequim perto de onde a gente morava.
Meu sonho era ir a São Paulo e ver um jogo do Coringão. Mas era difícil, tinha só uma folga na semana e então nunca dava pra ver o Timão jogar. Naquele ano de 1977, apareceu mais uma chance pro Corinthians ser campeão, e eu não perderia aquele jogo por nada. Só que tinham dois problemas: um, era dia de serviço; e outro, o patrão era torcedor fanático da Ponte Preta, que faria a final contra nós. Ele mesmo não iria ao jogo, então nunca que iria me liberar, sabendo que eu era corintiano roxo.
"Dane-se!", eu disse pra mim mesmo. Resolvi ir de qualquer jeito. Na manhã do dia do jogo, fui ao hospital, e lá falei pro médico que eu estava de caganeira. Ele olhou pra minha cara e desconfiou. Disse que me colocaria no soro. Acho que era pra ver qual seria a minha reação. Eu disse pra ele que não tinha problema, "queria ficar bom", que poderia até me dar injeção se precisasse. E não é que o sacana me colocou na maca, mandou a enfermeira meter uma agulha no meu braço e pendurou logo dois frascos?! E ela ainda enfiou um monte de injeção na borracha do soro. Fiquei lá umas quatro horas. O doutor não teve jeito e me deu o atestado para aquele dia. Saí do posto médico, passei em casa e pedi à minha irmã pra entregar o atestado ao patrão, lá no bar, e saí correndo para a rodoviária. Peguei o ônibus para São Paulo. Assim que eu cheguei, perguntei onde era o Morumbi e não demorei pra encontrar o estádio. Sou muito vivo para encontrar lugares. Paraibano dá sempre um jeito, né não?
Só que não tinha mais ingresso... Quando já estava desistindo, um cabra chegou no pé do meu ouvido e disse "ô meu, eu tenho um ingresso aqui. Se tu quiser é tanto". Nem lembro mais quanto custou, só sei que foi mais do que o dobro do preço. Por pouco fiquei sem dinheiro pra voltar pra casa depois do jogo. Quando entrei no estádio, quase tive um troço. Só tinha lugar no lado da torcida da Ponte Preta. Fiquei com medo de alguém me reconhecer e, ainda pior, descobrir que eu era corintiano. O jogo começou e foi aquele jogo murrinha o tempo todo. E eu lá, nervoso, e sem poder dizer nada. Quando aquela bola entrou, quase no final da partida, o mundo veio abaixo do outro lado da arquibancada ― aliás, era quase toda a arquibancada ―, e eu não podia vibrar. Acabou o jogo, acabou o desespero, fiquei só imaginando a cara de painho... Aí foi que eu chorei, mas foi de emoção, ao contrário do pessoal do meu lado, que chorava de tristeza. Ninguém percebeu, choro é choro.
Corri de volta pra rodoviária, e, depois de esperar muito pelo primeiro ônibus, cheguei a Campinas no início da manhã, o dia ainda clareava. Não preguei o olho na viagem. O ônibus estava cheio de torcedores da Ponte, muitos ainda choravam, outros xingavam, todo mundo triste. Se tinha algum corintiano no ônibus ― devia ter, afinal tem mais corintiano em Campinas de que qualquer outro time ―, mas tava tudo quieto igual a mim. Continuei com medo, agoniado porque ainda não podia mostrar minha alegria, até porque do meu lado sentou-se um cabra de quase dois metros, com camiseta da Ponte.
Quando o ônibus encostou e o pessoal começou a se levantar pra sair, eu liguei o radinho, e, pra meu azar, estavam no programa falando do jogo, bem na hora de repetir a narração do gol. Falo que "pra meu azar" porque eu me empolguei e gritei "gol!" junto com o narrador. Foi nessa hora que todo mundo voltou o olhar pra mim. A começar pelo cabra, vizinho de poltrona: "Ô baiano, tu tá tirando nós? Tu é bugrino?". Pra quê o sujeito foi falar aquela palavra... Outros passageiros perguntaram, entre eles: "O quê? Torcedor do Guarani aqui no ônibus? Cadê ele?". Me apontaram. Desci as escadas do ônibus com um cachação no pé do pescoço, vindo a cair na plataforma. Os cabras vieram com raiva pra cima de mim. "Fala, safado, tava fazendo o quê, aqui junto de nós?". Foi na hora que senti outra tapa na cara e um chute na costela. Não teve jeito e falei "sou corintiano". Acho que foi ainda pior. Um doido soltou uma paulada que passou ventando na minha cabeça. Se pegasse eu não tava aqui pra contar essa história. Saí em disparada, e aquele povo todo atrás de mim, correndo pelas ruas, gritando que eu ia morrer. Só consegui escapar deles lá pelos lados da Praça Luiz de Camões, quando tive a ideia de me esconder debaixo de um caminhão estacionado. Os caras passaram direto. Aí é que eu fui ver que tava todo cagado. Isso mesmo, não tenho vergonha de dizer que me caguei todo, me caguei de medo.
Sem um tostão no bolso ― também nem podia pegar uma condução daquele jeito! ―, tive que ir pra casa a pé. Era muito chão! Depois de muito tempo andando, quase chegando em casa, encostou um carro do meu lado e eu gelei. Será que eram eles ainda? Não, era meu patrão, que morava ali pelas redondezas. Na certa ele tava puto pelo resultado do jogo. Ele me viu, parou, desceu do carro e veio na minha direção, dizendo "Tá fazendo o quê aí, rapaz?". Na hora que ele chegou perto de mim, talvez pra me dizer que eu tava despedido, ele tapou o nariz e deu dois passos pra trás. Eu já falei que sou muito vivo, não é pra me gabar, pois me veio uma ideia no pensamento e eu disse pra ele "Tá vendo, patrão? Tô doente mesmo. Foi só sair um tantinho de casa, pensando que já tava bom, e me borrei todo". O patrão acreditou, pelo menos assim eu acho. Então ele disse "Vai pra casa, Evilásio, seu cagão! Quero tu logo mais pronto pro serviço!"
No final valeu a pena. Apanhei, me caguei de medo, mas tenho história pra contar. Vira e mexe me pego lembrando daquela aventura e dou muita risada, principalmente quando solto um peido e grito: "Basílio, filho de uma égua!"
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Contos aleatórios
Short StoryLiteratura contemporânea, contos diversos, com temas realistas e adultos, além de outros causos.