A corrupção nossa de cada dia

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"Decerto é desonesto corromper consciências, mesmo neste caso, mas aqui abster-me-ei de julgar, porque se, por exemplo, Ivã e Cátia me tivessem confiado um papel nesse negócio, não teria hesitado em empregar a corrupção" Aliócha, em Irmãos Karamázovi; Dostoiévski, Fiódor

Ele sabia que não era bem-vindo ali. Adegilson nem tinha um nome adequado para ser aluno daquela Universidade Federal. Ainda mais sendo Santos de Souza. Ainda mais sendo uma Faculdade de Direito. Ainda mais sendo soldado da Polícia Militar.

Sentado no último banco do ônibus que cortava o subúrbio àquela hora da noite, braços cruzados, segurava o cabo do revólver portado a contragosto. Sempre havia o risco de assalto, e, se não atirasse primeiro, não teria a menor chance de sobreviver. Lutava contra os olhos que insistiam em se fechar naquela tripla jornada. Depois do serviço no quartel e das aulas no cursinho, para se lembrar das disciplinas do ensino médio concluído em escola pública fazia tempos — ou vê-las pela primeira vez, sabe como é...  — , dirigia-se ao "bico" em um depósito de medicamentos. Um olho nas câmeras de segurança e outro nos cadernos. 

Contrariando todos os prognósticos, Adegilson passou no Vestibular, já beirando os trinta anos de idade, num tempo em que não havia cotas. E lá foi o Soldado De Souza que queria ser "doutor". Disposto a cumprir à risca o cronograma do curso, não deixou nenhuma disciplina para depois, tanto que frequentou aulas em todos os turnos, fazendo um "malabarismo" diante de seus chefes para dar conta de tudo ao mesmo tempo, ainda que isso tenha lhe custado um dinheirinho ali e acolá, afinal, a vida é uma via de mão dupla, sabe como é...

O pior de tudo foi conviver com a garotada da manhã. O turno matutino era um bolsão de riqueza, cujos alunos vinham de colégios competitivos, mais caros que as faculdades particulares de Direito. Ele permanecia no seu canto, sempre em silêncio, e, nas raras vezes em que foi abordado por outros alunos, fez o tipo acabrunhado, jamais falando de si mesmo, respondendo com evasivas a uma pergunta ou outra. Ninguém sabia de seu ofício, por uma questão de autopreservação, sabe como é ...

Naquela ocasião, houve um acontecimento na cidade, que repercutiu mundialmente. Uma chacina na favela, em que policiais militares mataram dezenas de pessoas, entre traficantes e simples moradores, estes sem qualquer envolvimento com o crime. Entre as vítimas, apenas um detalhe em comum: a cor da pele, a mesma dele. Adegilson morava perto daquela comunidade. Lá, ninguém, da mesma forma, sabia em que ele trabalhava. Embora fosse mais fácil para se camuflar, ainda assim não seria bem-vindo. Ninguém gosta do "polícia", sabe como é...

Em certa manhã, a aula de Direitos Humanos, disciplina eletiva, transcorria com o discurso inflamado da professora contra a atitude da polícia corrupta e truculenta no episódio. Os alunos faziam coro, dando exemplos de algumas abordagens, em que muitas vezes se viram obrigados a deixar uma propina, de modo a escaparem de seus flagrantes —"um baseadinho de nada", um documento do carro em atraso, uma falta de carteira de motorista, coisinha à toa. Um absurdo a atitude da Polícia. "Raça de ladrões!". Adegilson se corroía por dentro, doido para interpelar e passar um esbregue em todos eles, no entanto, sem mover um músculo da face, conteve-se.

Num dado momento, o flanelinha, que olhava os carros estacionados em frente ao prédio antigo onde funcionava a Faculdade, apareceu à porta da sala de aula, para espanto da maioria:

— Doutora, dá licença?

A professora olhou por cima dos óculos e reconheceu o rapaz:

— O que aconteceu de tão sério para você interromper a minha aula?

— Eu só queria dar um recado ao pessoal que deixou os carros na fila dupla. O guardinha tá lá embaixo multando todo mundo, e diz que vai chamar o reboque se não tirarem agora. O cara é novo na área e foi logo dizendo que não faz acerto com ninguém.

A notícia causou um rebuliço na classe. Alguns hesitaram um pouco, outros se levantaram e saíram sem pedir licença. A professora, olhando para aqueles que ainda ficaram, disse-lhes, apontando para a porta:

— Estão esperando o quê? Vão lá agora resolver!

A professora também desceu, a fim de garantir os direitos dos alunos. Poucos permaneceram na sala. Talvez fossem os menores de dezoito anos ou alguns que ainda não tinham carro, ou, então, aqueles cujos motoristas da família os deixavam cedo e voltavam na hora da saída. Adegilson, de cabeça baixa, continuou a ler as fotocópias referentes ao livro da disciplina, colocadas no Centro Acadêmico à disposição dos alunos para serem reproduzidas. Questão de economia, sabe como é...

Os colegas e a professora retornaram à classe, revoltados diante das multas que levaram. E ainda se viram obrigados a colocar seus carros em estacionamentos pagos. Não havia mais tempo nem ânimo para que a aula continuasse. Os alunos estavam muito abalados, e a professora, bastante contrariada diante da intransigência do policial de trânsito. "Atrevido!" Ela prometeu tomar providências. Falaria com o Comandante do Batalhão, faria de tudo para trazer o guarda anterior, mais maleável, sabe como é...

O pessoal só não entendeu o silêncio de Adegilson. Tampouco aquele sorriso enigmático, de canto de boca.


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