Capítulo 2

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Capítulo 2

Depois da conversa com a Diretora da empresa Margarida tinha envelhecido alguns anos, e embora fosse livre para não colaborar naquele plano que lhe parecia imbecil, a sua curiosidade macabra iria vencer, e sabia que a aguardavam noites angustiantes de insónias assim que aceitasse trabalhar com o "Tó Nuno"! Apelidara assim secretamente o polícia, depois de ter sido comparada por este com uma miúda de 15 anos. Era o seu lado vingativo a deitar as unhas de fora.

Decidiu que iria tirar o resto do dia para deprimir longe do local do crime, e pela primeira vez em muitos anos, não ficou com remorsos por deixar toneladas de trabalho em cima da secretária. Mas antes de sair, precisava de fazer algo muito importante que não poderia esperar pelo dia seguinte, agarrou no manuscrito perfumado e lançou-o violentamente para o caixote do lixo, materializando a sua frustração.

Conduziu vagarosamente até ao único local onde lhe apetecia estar naquele momento, a casa da mãe. Desejou que esta adivinhasse a sua iminente chegada e tivesse cozinhado um dos seus pratos favoritos, necessitava de comer urgentemente e não seria uma sandes que a iria consolar.

Isabel ficou espantada com aquela visita surpresa a meio de um dia de trabalho e a estranha aparência da filha deixou-a um pouco chocada, fazendo-a reviver momentos de ansiedade e impotência perante uma adolescente inconformada e solitária, mas como qualquer mãe galinha, ficou feliz por poder enfardá-la com comida caseira.

Margarida era filha única, e a mãe o seu único familiar vivo. Durante toda a infância tinha suplicado para os pais lhe darem irmãos, mas só na juventude lhe fora explicado que a mãe não poderia ter mais filhos, e ela era um milagre, pois contrariara todas as certezas dos médicos ao nascer. Esta inevitabilidade do destino fez dela uma criança solitária, obrigada a adaptar-se ao comportamento adulto, passando eternidades sentada em frente ao pai, cada um com o seu livro, perdidos nos seus pensamentos. Quando Dinis inesperadamente morreu, Margarida tinha dezasseis anos, ficando apenas com a mãe e os grandes clássicos espalhados na mesa de centro da sala de estar, que seriam o seu refúgio nos anos seguintes, e um consolo emocional que a manteria ligada à memória do pai.

De todos os autores, Eça de Queirós era o seu preferido, talvez por se recordar das gargalhadas de barítono que Dinis soltava ao ler a "Relíquia", uma sátira mordaz aos falsos beatos da sociedade portuguesa do século XIX. Margarida poderia ficar horas no pequeno sofá de pele puída a admirar aquele homem grande e alegre, inspirando o cheiro da sua cigarrilha aromática, que aos catorze anos experimentou fumar às escondidas. Estava sozinha em casa naquela tarde e decidira ganhar coragem para tentar perceber qual seria o prazer daquele vício. Deu duas passas exageradamente longas e só se recordava de acordar esticada no sofá com os lamentos histéricos da mãe, que lhe colocava água fresca na cara pálida, e um riso abafado do pai que gozava aquela cena queirosiana afastado da mulher, que repreendia ferozmente o seu sentido de humor macabro.

Eram uma família feliz, e Margarida e Isabel tinham ficado sozinhas cedo demais.

- Estás doente querida? - perguntou Isabel, preocupada - Não me lembro de alguma vez teres faltado ao trabalho. Queres um chazinho? - Para Isabel tudo se curava com uma xícara de chá quente. Dores, más disposições, tristezas, desgostos e uma tisana mágica era a solução!

- Não, mãe, estou apenas chateada. Hoje tive uma manhã difícil e precisava de desanuviar a cabeça, nada mais. - e Isabel percebeu que não era necessário mais conversa. A filha tinha uma forma muito própria de se resolver internamente, e a ela cabia o papel de a auxiliar nesse processo com comida feita com bastante amor. Levantou-se e deixou a filha sorumbática na sala de estar, dirigindo-se animadamente para a sua sala de poções, pronta a desempenhar o seu papel de enfermeira holística.

Margarida, o Bom e o Mau GiganteOnde histórias criam vida. Descubra agora