Capítulo 5

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Um ronco forte arrancou Margarida do seu sono reparador. Sobressaltou-se quando, ao abrir os olhos, deu consigo enroscada no baixo-ventre de um homem que dormia profundamente, meio sentado e descalço, por cima das cobertas. Tinha uma forte dor nos músculos do pescoço devido à posição estranha em que tinha estado a dormir, mas curiosamente sentia-se mais leve que nunca.Nuno tinha colocado uma almofada atrás da cabeça e deixara-se ficar a olhá-la e a murmurar-lhe palavras de consolo. Margarida falara toda a noite coisas sem nexo: cigarrilhas, adolescentes loiras, gigantes musculados - que fetiches estranhos tinha aquela mulher, pensava ele - e um tal homem que segurava um livro. Este intrigara-o durante algum tempo, até que Margarida se voltou na cama revelando um pouco mais do que devia e Nuno, atrapalhado, tratou de a tapar rapidamente, não sem antes espreitar uma vez mais e recostar-se satisfeito com a sua indiscrição secreta até acabar por adormecer.Estava esfomeada e foi em silêncio à cozinha preparar o pequeno-almoço, deixando Nuno a dormir na sua cama, naquela posição estranha que, sem ela ali enroscada, lhe dava um ar cómico.Colocou o café a fazer e pôs a mesa para dois, apressando-se a ir tomar banho antes que ele acordasse. Seria ainda mais trágico que, depois da cena do dia anterior em que tinha colapsado de medo, ele a visse, e se tudo corresse bem, a cheirasse novamente, acabadinha de acordar.Lavou-se rapidamente, vestiu-se com a roupa que levara consigo para a casa de banho, manteve a toalha na cabeça, ao estilo das atrizes de cinema e foi espreitar o café que já devia estar pronto.Na cozinha, Nuno lutava com as torradas quentes e aquela cena familiar de ver um homem adulto a praguejar de manteiga na mão trouxe-lhe uma súbita melancolia ao se recordar de seu pai. Desde os 16 anos que não partilhava o seu espaço com homens. Não era nenhuma freira, mas mantivera os seus relacionamentos distantes da soleira da porta. Paranóica com os perseguidores "tarados", Margarida não permitia que a sua morada fosse revelada e por diversas vezes temeu estar a enlouquecer quando se apercebia de que andava às voltas a pé nos quarteirões vizinhos a despistar os namorados.Mas Nuno ali não a incomodava, talvez porque fosse polícia, tivesse 1,90m de altura, fosse musculado e giro? Aquele homem estava a transformá-la numa fútil palerma... Pelos menos dormia melhor, pensou. Já era um começo.


- Bom dia! - Margarida tirou a chaleira do café da máquina e colocou-a na mesa, sentando-se na cadeira de frente para o cozinheiro com pouco jeito para torradas.- Bom dia - respondeu Nuno sem se virar, mantendo-se concentrado na difícil tarefa de barrar manteiga dura em pão frágil e quebradiço. Depois de esfrangalhar várias fatias de torrada e inspirar longamente sob o olhar atento de Margarida, virou-se e colocou na mesa os restos mortais do pão desfeito. Margarida estava silenciosa, à espera do ralhete que se seguiria, à semelhança das cenas paternais que não lhe saíam da cabeça.- Com que então a Menina anda a ser seguida por um doido, quase morre com um ataque de pânico e está assim tão fresca e airosa, hein? É tudo devido à minha presença, ou a sua capacidade de fingimento é maior do que o normal? - soltou ele na terceira pessoa, o que a fez reviver de forma angustiante os modos de Dinis quando estava aborrecido com ela.- Devo-te uma explicação, eu sei, mas até ontem à noite juro-te que pensava que o homem era apenas mais uma das minhas obsessões malucas... - confessou humildemente. - Vi-o pela primeira vez enquanto almoçávamos, estava sentado na paragem de autocarro do outro lado da rua a observar-nos. Depois, no Parque, à noite, ele apareceu novamente num banco e beijei-te para ele perceber que eu não era uma mulher indefesa e solitária. Eu pensaria duas vezes em me meter com alguém que namorava um armário. - e as confissões pouco pensadas de Margarida saíam-lhe da boca com rapidez, o que a levou a corar. - Não era bem isto que queria dizer, bem, tu percebeste? - e ficou apreensiva ao ver uma névoa de desilusão no olhar dele. Tinha sido cruel afirmar que o tinha usado, e a verdade nem era bem essa, mas o orgulho de Margarida vencia sempre, negando-lhe a franqueza dos seus sentimentos junto de outros.- Ainda bem que sirvo para alguma coisa - bufou ele - ou não sirvo, vistas bem as coisas, quase foste atacada ontem. - desdenhou.- Nuno, desculpa, foste um bom amigo. Se não fosses tu, tinha ficado inconsciente no hall de entrada até de manhã. - Margarida sentiu-se arrependida e lamentou ser tão desequilibrada emocionalmente. Ele ficara magoado, e com razão.- Bem, bebe o teu café e vai lá secar o cabelo que há muito trabalho a ser feito. - aquilo era uma ordem, e Margarida sentiu que quebrara alguma coisa dentro dele. Os remorsos subiram-lhe até à garganta e perdeu a fome, levantou-se e deixou-o só com os seus pensamentos.

Margarida, o Bom e o Mau GiganteOnde histórias criam vida. Descubra agora