Não havia maneira de Nuno conseguir calar a sobrinha, que descrevia pormenorizadamente uma afronta pública que uma "Maria Qualquer" lhe tinha feito no intervalo da tarde. Perguntava-se como teria sido Margarida aos quinze anos. Duvidava que andasse envolvida em peixeiradas adolescentes, mas, se a provocassem, certamente que não iria para casa com desaforos.Sofia batia as portas de casa desesperada por não encontrar «aquela blusa»! Sim, tinha toneladas de roupa, mas naquela noite só a blusa dos folhinhos é que lhe servia... Nuno girava de volta dela, tentando ajudar, mas só conseguia atrapalhar.Finalmente conseguiu arrancar a sobrinha de casa e deixou-a no prédio de Ana, suspirando de alívio. Pegou no telefone, mas antes de fazer a chamada para Margarida, abriu o sms com a morada da sogrinha. Quem te viu e quem te vê, Nuno Santos, pensou ele contente com a sua nova condição de "enamorado".Poisou o telefone e carregou no acelerador, tinha bastante curiosidade em conhecer Isabel.Margarida recuperou os sentidos, continuava tudo escuro. Teria sido aquilo um sonho? Tentou recordar-se de tudo o que tinha acontecido. Lembrava-se de deixar Nuno à porta do liceu, ir a casa da mãe, de chamar por ela e o escuro... Entrou em parafuso com a ideia do que se teria passado com Isabel. Teria sido atacada também? A mãe era ainda mais frágil que ela, uma pessoa pacífica e doce. Deus não podia permitir que lhe fizessem mal... Tinha uma dor muito forte na nuca....Ao aperceber-se de que tinha um pano em volta da cabeça e os membros superiores presos, o pânico voltou a apoderar-se da sua garganta, e as lágrimas caíram-lhe silenciosas pela face. Sentia-se balouçar de um lado para o outro, ia deitada, possivelmente num banco de um carro, mas para onde a levavam? O que tinha feito ela para que a tratassem daquela forma? - Os seus maiores pesadelos estavam a ser materializados, era perseguida por um estranho alto que a espiara e tentara entrar em sua casa na noite anterior, tinha sido raptada, encapuçada, amordaçada e estava de mãos atadas.Ouvia um rádio a tocar baixinho e tentou não emitir qualquer som nem fazer nenhum movimento que denunciasse estar acordada. - O seu maior receio naquele momento era a dor física, estava em alerta total com medo de ser agredida, e pior de tudo, morrer com dor. - A garganta ameaçava um bloqueio iminente, mas esforçou-se por se manter calma. Nos livros, era assim que as vítimas se conseguiam manter vivas... pelo menos durante algumas horas. Sentiu o telefone no bolso de trás das calças e antes que este tocasse, como tinha as mãos atadas nas costas, procurou a patilha de silêncio do iphone e colocou-o mudo. Lembrou-se de que a tecnologia permitia localizar telefones modernos e isso foi o suficiente para a garganta relaxar uns centímetros, talvez ainda houvesse esperança...O veículo parou de repente e depois de uns segundos, que lhe pareceram eternos, foi arrancada do carro com violência. Ela emitiu um som de súplica e ele cumprimentou-a.- Ora viva! - seria aquela uma expressão de polícias? Nuno também se dirigia a ela da mesma forma... - Vamos lá então resolver isto, estou farto desta merda! - a voz estava carregada de ódio, Margarida sentiu-se a querer desmaiar. Só a ideia de Nuno a encontrar com vida a trouxera de volta à realidade. Tinha de aguentar. - Ajuda-me por favor...
Nuno estacionou o jipe e decidiu ligar pela quinta vez a Margarida. Ela não atendia e ele desistiu de tentar denunciar a sua chegada, dirigindo-se a casa de Isabel.A entrada do prédio estava escancarada, deviam andar a carregar coisas, matutou ele e entrou, deixando a porta naquela posição. Subiu ao primeiro andar e assim que viu o número 3, soou o alerta em todas as células do seu corpo. Lançou-se a correr desvairado para dentro do apartamento que estava aberto. A mala de Margarida estava caída na entrada, pegou nela e percorreu todas as divisões da casa, possuído por uma mistura de terror e raiva que espatifavam tudo por onde o gigante passava. Aquilo não podia estar a acontecer. A visão de Margarida a ser raptada, ou pior, morta, invadia-lhe a mente, levando-o à loucura.Encontrou uma mulher deitada na cama e foi percorrido por um arrepio de medo ao vê-la tão quieta, aproximou-se e certificou-se de que estava viva. Deveria ser Isabel, raciocinava dificilmente Nuno. Ela dormia profundamente. Tinha sido drogada... Reagiu por instinto e chamou uma ambulância. Saiu enlouquecido do apartamento, sem saber o que fazer. Olhava para todo o lado, em busca de uma pista, um sinal, alguma testemunha do que se tinha passado, alguém que a tivesse visto.Sentou-se nos calcanhares, com a cabeça entre as mãos, tentando recuperar alguma clareza de espírito. Se não fosse Ela, Margarida, a vítima, o que faria? Obrigava-se a pensar como polícia, mas a dor da impotência e o medo de a perder não deixavam a mente responder.Entrou no carro, olhou a rua deserta e ligou o motor do jipe, e agora? O telefone tocou e os níveis de ansiedade aumentaram. Seria Ela?.... Era o irmão. Recusou a chamada e nesse instante teve uma ideia. Tinha de resultar! O filho da puta não a ia matar, prometeu a si mesmo.Retribuiu a chamada a Jorge, que atendeu prontamente,-Então pá?! Já te esqueceste outra vez do jantar? Estamos todos aqui à espera! – disse, animado com a ideia de conhecer a namorada do irmão.- Jorge, preciso que autorizes a localização do telemóvel da Margarida! AGORA! Liga para o Jaime e dá-lhe o número dela, vou enviar-to por mensagem. Mas Já! – e desligou o telefonema enviando os dados por sms, ligando de volta para o escritório de Jaime, o colega das telecomunicações, que se demorou a atender, talvez já estivesse a caminho de casa... Depois de duas tentativas, ele atendeu.- Jaime, sou eu, Nuno. Houve um rapto e possivelmente a vítima tem consigo um iphone. O Jorge vai enviar-te agora o número e preciso imediatamente da localização do aparelho, não desligues a chamada e vê no teu telemóvel se já recebeste. – naqueles momentos do tudo ou nada as conversas entre os inspetores eram reduzidas a factos e Nuno sabia dar ordens.- Sim Nuno, já chegou. Tem calma pá, já estou à procura no sistema, mas sabes quem é que raptou a tua namorada? – Jorge já abrira a bocarra, pensou Nuno. Teria de se justificar mais tarde aos seus superiores por estar a passar por cima de procedimentos obrigatórios que deveriam dar início a uma investigação.- Suspeito, só isso. – respirava com dificuldade e conduzia freneticamente mantendo-se em alerta para a qualquer momento se dirigir às coordenadas que Jaime lhe indicasse.- Espera... esteve em movimento até há minutos. Agora parou por um bocado. Dirigiu-se a... Central de Cervejas? Mas aquilo está tudo abandonado... – Jaime teve um mau presságio, aquelas antigas fábricas abandonadas eram recorrentemente o palco de pequenos crimes que envolviam droga. Porque alguém levaria para ali a namorada de um PJ era mais estranho.- Queres reforços? O Jorge quer saber para onde vais ser direcionado, e eu ia sair agora. Também posso lá ir dar uns socos? – tentou desanuviar Jaime.- Não, este é só para mim. – e desligou o telefone.Jaime não obedeceu, ligou a Jorge dando-lhe a direção e saiu a correr deixando os colegas de orelhas no ar com o cheiro de adrenalina explícito de que havia problemas.
Estava a ser arrastada pelos braços em direção ao desconhecido, continuava tudo escuro. Margarida tropeçava nos próprios pés, o homem caminhava quase a passo de corrida e não lhe dava tempo para ela o acompanhar.Repentinamente foi sacudida para baixo e sentiu uma cadeira. Todo o seu corpo tremia violentamente, naquela expectativa aterrorizante do que se seguiria. O homem arrancou o pano da sua cabeça, devolvendo-lhe a visão. A noite ameaçava aparecer, Margarida não sabia quanto tempo se tinha passado. Teria Nuno percebido que ela tinha desaparecido? Esforçava-se por respirar ritmadamente, obrigando o corpo a aceitar o oxigénio, poderia até morrer ali, mas não sufocada. Suplicava a Deus que não a deixasse naquela hora. Olhava aterrorizada à sua volta, e reconheceu imediatamente aquele lugar... Mas porque estava ela naquele sítio?Ouviu passos atrás dela, e os tremores do seu corpo recomeçaram mais violentos.- Com que então, a Menina descobriu que eu fui paciente da Puta egoísta, hein? - ela susteve a respiração involuntariamente, as lágrimas correram novamente e chegaram ao pescoço. Porque seria que aquele homem falava da mesma forma que Nuno? - Davas uma polícia e tanto - escarneceu calmamente o raptor.Colocou-se diante dela de pé, o seu tamanho era impressionante visto da sua perspectiva. Mais um gigante, pensou em pânico. Olhavam-se nos olhos e algo de familiar a Margarida surgia naquela cara de louco que estava visivelmente alterado, parecia possuído.Arrancou da boca de Margarida o pano que a silenciava.- Que mais é que tu já percebeste? Responde cabra! - gritou-lhe, fazendo-a estremecer com violência.A garganta de Margarida colava cada vez mais com o pânico e ela não conseguia falar, exasperando o polícia.- És das que gostam de dificultar as coisas... estou a ver. - deu um estalo fortíssimo nela, e foi como se uma tábua lhe tivesse acertado em cheio na cara - Antigamente tínhamos uns métodos eficazes para vacas mentirosas como tu! Mas bater em mulheres é feio, dizem agora os modernos... - olhou-a com nojo e deu-lhe um soco no estômago que a fez vomitar instantaneamente. Margarida tossia sangue e contorcia-se de dor, ficando com a visão enevoada por algum tempo. Morreria facilmente, se aquele gigante lhe batesse mais, pensou ela aterrorizada.- Eu avisei-a de que não me podia tratar como esterco, eu tinha direitos! - gritou ele sem nexo. - Mas NÃO... fui enganado, brincaram comigo enquanto puderam... - o homem caminhava frenético, como se procurasse alguma coisa naquela sala meio destruída. - Aquela Puta egoísta obrigou-me a vê-lo durante anos! – confessou ele com raiva e começou a rir descontrolado, erguendo uma garrafa e bebendo uma grande quantidade do que parecia ser vodka.Margarida não compreendia nada do que ouvia, apenas rezava interiormente chorando em silêncio. As dores no abdómen eram cada vez mais fortes e temeu estar a morrer.- Agora querem lixar-me novamente! - ficou sério e dirigiu-se a Margarida que fechou os olhos e contraiu todos os músculos do corpo à espera de uma próxima pancada. A sua cara foi atingida por um murro que lhe abriu o sobrolho e fez correr um rio de sangue.- Não o posso matar, não consigo... - lamentou ele no seu discurso desvairado - mas tu vais calar a matraca e parar de lhe pôr ideias na cabeça. É por isso que vais morrer. Ele afastou-se e saiu por momentos do espaço fantasmagórico deixando-a sozinha, algo o levara a fazer uma pausa naquele momento de terror.
Noutros tempos Margarida tinha vivido momentos felizes naquele local. «Ouro sobre azul», dizia-lhe Dinis, passeando de mão dada com ela naquela sala gigante forrada a azulejos de cor azul real que protegiam uma cuba enorme de cobre amarelado e brilhante. O Engenheiro adorava passear com a filha curiosa pela fábrica, explicando-lhe a magia que acontecia lá dentro na transformação de cereais em garrafas com bebida. Para uma criança era um mistério como o ser humano inventara tudo aquilo, e o pai um druida poderoso.
O antigo cheiro da maturação da cerveja era substituído agora pelo acre do seu sangue e odores fortes a abandono e degradação característicos de locais fantasma. Margarida tentou reter a imagem da sua infância na mente, agarrando-se a ela como a uma bóia de salvação. Dinis acenava-lhe, sorridente, e ela olhava-o a trabalhar, feliz.