O retorno

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O que somos além de uma colcha de retalhos de saudades, experiências tristes e felizes e sonhos que não se realizaram? Eu acredito que nada. Estamos sempre nos descobrindo mais humanos e isso nos afasta do divino. Ou será que no fundo, isso nos aproxima? Como sempre digo, meus personagens são fragmentos de minha história. Estamos vivendo tempos difíceis, onde o ter parece ser mais importante do que o ser. Isso eu nunca entendi e pretendo não entender jamais. Perante minha miopia para compreender o mundo, somos muitas vezes obrigados a voltar para o lugar de onde juramos que jamais regressaríamos. Seria isso algo vergonhoso? Não, digo e acredito. Aliás, preciso acreditar. Algumas coisas precisam ser resolvidas, precisam ser descobertas e entendidas. Nada melhor do que o tempo e o destino para nos levar mais uma vez para os conflitos que enterramos nas areias da praia.


As ondas estavam agitadas e avisavam que uma nova tempestade surgiria a qualquer momento. Ouviu-se falar na televisão que seria uma ressaca, assim como também se viam pessoas vestidas de verde e amarelo, comemorando a eleição de ditador. Iemanjá com certeza não devia estar feliz, pensava Chico. Andando pelo cais com o cigarro entre os dedos, sua pele cansada, barba por fazer, roupas molhadas e sujas, conseguia admirar a força do mar. As ondas se chocavam com a areia da praia e a tempestade se aproximava rapidamente.

"Quem dera já estivesse por lá."

Quantas saudades! Quantas lembranças! Lembrava-se das ruas e avenida, das praias e das cachoeiras. Apesar de tudo, estava apreensivo e prestes a voltar de onde mais sentia medo: o passado. Ele era uma adaga que havia perfurado seu peito não tão velho e o machucava, mas que ainda o mantinha vivo. No fundo, ainda sentia esperança. Um raio cortou o céu escuro daquela tarde cinzenta. Era Iansã que se aproximava com seu erukerê, espada e roupas vermelhas. Ventos fortes e poderosos.

- Por que os Orixás estão tão revoltados? Será que não deveria voltar ou será que estão nos avisando dos tempos sombrios que começarão?

Chico já não era tão jovem assim para não saber sobre sua cultura. Dotado de grande esperteza e malandragem, gostava de ler e entender o mundo, mas pelo visto, o mundo não o entendia. Todos tão presos em seus pensamentos, tristezas, angústias e ódio, não conseguiam perceber o quanto estavam sendo iludidos por seus pensamentos.

"Quanta perda de tempo! Olha o mar avisando que nada está do jeito certo!"

Começou a chover pingos de navalha de tão doídos. Chico se escondeu em um bar de pouco movimento de onde ainda conseguia ver a tempestade. Pediu uma dose de conhaque e sentou. Pegou uma folha de papel velha que estava sobre a mesa e pediu uma caneta para que pudesse escrever.

"Aqui estou eu de alma e coração. Naufragado no mar de minhas lembranças. Uns me chama de morto. Morto? Só se for de saudades! De ouvir o canto dos pássaros, do grito das maritacas, da balsa que vai navegando e de andar naquele cais. Essas ondas tão espumadas devem ter sido feitas para admirar. A sereia canta anunciando a chegada da Rainha dos Mares. Quem diria que de seu solo gerasse o sentimento mais próximo de Deus que possuo."  

Aquele Velho CaisOnde histórias criam vida. Descubra agora