2-A Sala dos Reptéis

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        Não adianta tentar transmitir como foi duro para os sentimentos de Violet, Klaus eSunny o período que se seguiu em sua vida. Se alguma vez vocês perderam uma pessoaque tinha grande importância para vocês, então sabem como é que nos sentimos nessashoras, e, se nunca perderam, não dá nem para imaginar. Para os jovens Baudelaire, éclaro, foi uma experiência especialmente terrível, porque perderam pai e mãe de uma só vez, e durante muitos e muitos dias se sentiram tão arrasados que mal tinham ânimo parasair da cama. Klaus não conseguia achar interesse nos livros. Os mecanismos quepunham em ação o cérebro inventivo de Violet pareciam estar travados. E até mesmoSunny, que evidentemente era jovem demais para entender de fato o que estavaacontecendo, dava suas mordidas com menos entusiasmo.Naturalmente, não melhorou nada a situação o fat de eles terem ficado tambémsem a casa e sem tudo o que possuíam. Vocês devem saber muito bem que bastaestarmos em nosso próprio quarto, em nossa própria cama, para os momentos maishorríveis perderem um pouquinho do seu peso esmagador. Mas as camas dos Baudelaireórfãos haviam sido reduzidas a escombros carbonizados. O sr. Poe os levara para daruma olhada no que restava da mansão, para ver se sobrara algo que se pudesseaproveitar, e a impressão foi terrível: o microscópio de Violet se fundira por completo nocalor do fogo.A caneta preferida de Klaus estava transformada em cinzas, e todas asargolas de Sunny pôr na boca para morder tinham se derretido. Num e noutro canto, ascrianças podiam notar os vestígios do que outrora fora o casarão tão amado por elas:pedaços do seu piano de cauda, uma elegante garrafa em que o sr. Baudelaire guardavao conhaque, o estofamento esturricado da poltrona que ficava junto à janela e em que amãe deles gostava de sentar e ler.Com seu lar destruído, os Baudelaire tiveram que se recuperar da terrível perdatransferindo-se para a casa da família Poe, cujo ambiente não era agradável. O sr. Poeraras vezes estava em casa, porque ficava muito ocupado cuidando dos interesses dosBaudelaire, e quando estava, tossia tanto que mal conseguia manter uma conversa. A sra.Poe comprou para os órfãos roupas em cores grotescas e que pinicavam o corpo. E osdois filhos de Poe - Edgar e Alberto - eram meninos barulhentos, agitados, muitoantipáticos, com quem os Baudelaire tiveram que partilhar um quarto minúsculo em quepredominava um cheiro de flor dos mais enjoativos.Mas, apesar desse ambiente pouco convidativo, os jovens Baudelaire afundaramem dúvidas quando, durante um jantar de galinha cozida com batatas cozidas e vagemescaldada - a palavra escaldada que estou usando aqui significa "cozida" -, o sr. Poeavisou que no dia seguinte eles se mudariam de sua casa."Ainda bem", disse Alberto, com um pedaço de batata entre os dentes. "Assimrecuperamos o quarto. Não agüento mais dividir o espaço. Violet e Klaus passam o tempotodo sem fazer nada, e não têm a menor graça." E o bebê morde", disse Edgar, jogando um osso de galinha no chão como se elefosse um bicho no Jardim zoológico e não o filho de um respeitável membro dacomunidade financeira."Para onde iremos?", perguntou Violet, nervosa.O sr. Poe abriu a boca para dizer algo, mas rompeu num breve acesso de tosse."Tomei providências" disse finalmente, "para que sejam criados por um parente afastadode vocês que mora no outro lado da cidade. Chama-se conde Olaf."Violet, Klaus e Sunny se entreolharam, sem saber o que pensar. Por um lado,eles não queriam continuar morando com os Poe. Por outro, nunca tinham ouvido falar noconde Olaf e não faziam Idéia de como ele pudesse ser."O testamento de seus pais", disse o sr. Poe, "estabelece que vocês sejamcriados nas melhores condições possíveis. Vocês já se acostumaram a morar na cidade,e esse conde Olaf é o único parente que vive dentro dos limites urbanos."Klaus refletiu um minuto sobre o assunto, enquanto mastigava longamente umpedaço de vagem que estava custando a engolir. "Mas nossos pais nunca mencionarampara nós o conde Olaf. Qual é exatamente o grau de parentesco que ele tem conosco?"O sr. Poe suspirou e baixou os olhos na direção de Sunny, que mordia um garfoe escutava, atenta. "Ele é primo em terceiro ou quarto grau de vocês. Não é o seu parentemais próximo na árvore genealógica, mas é o mais próximo geograficamente. É por issoque..."Se ele mora na cidade", disse Violet, "como é que nossos pais nunca oconvidaram para ir lá em casa?""Talvez por ele estar sempre muito ocupado", disse o sr. Poe. "É um atorprofissional, e viaja muito pelo mundo com as mais diversas companhias teatrais.""Pensei que ele fosse um conde", disse Klaus."Ele é um conde e um ator, disse o sr. Poe. Bom, lamento interromper a refeição,mas vocês precisam arrumar as malas, e eu tenho que voltar ao banco para continuarmeu trabalho. Na condição de seu novo tutor legal, eu tenho muitos afazeres."Os três irmãos Baudelaire tinham muitas outras perguntas para fazer ao sr. Poe,mas ele já se levantara da mesa e, com um leve aceno de mão, retirou-se da sala. Aindaouviram quando tossiu no seu lenço, até que finalmente a porta da frente rangeu aofechar quando ele saiu para a rua."Bom", disse a sra. Poe, "vocês tratem de ir arrumando as malas. Edgar, Alberto,por favor, venham me ajudar a tirar a mesa." Os órfãos Baudelaire foram para o quarto e melancolicamente arrumaram asmalas com seus poucos pertences. Klaus olhava desgostoso para cada uma das camisasfeiosas e ordinárias que a sra. Poe havia comprado para ele, à medida que as dobrava,ia pondo numa maleta. Violet observava à sua volta e colhia uma impressão geral docômodo malcheiroso e atravancado em que tinham estado morando. E Sunnyengatinhava em todas as direções e mordia solenemente cada um dos sapatos de Edgare Alberto, deixando marcas de seus dentinhos para que não fossem esquecidos. Dequando em quando, os jovens Baudelaire se entreolhavam, mas, com o futuro sendo umtal mistério, não conseguiam imaginar nada para dizer. Deitados para dormir, viraram-se ese agitaram na cama a noite toda, mal conseguindo um farrapo de sono entre os roncospesados de Edgar e Alberto e a perturbação que os seus próprios pensamentos aflitivoslhes causavam. Até que, por fim, o sr. Poe bateu à porta e pôs a cabeça dentro do quarto."Bom dia, vamos começar o grande dia", disse ele. "Está na hora de vocês irempara a casa do conde Olaf."Violet olhou para o quarto atravancado em torno dela e, apesar de não gostar dali,sentiu-se muito aflita por ter que ir embora. "Temos que ir neste exato momento?"perguntou.O sr. Poe abriu a boca para falar, mas primeiro tossiu algumas vezes. "Têm, sim.Vou deixá-los no meu caminho para o banco, de forma que precisamos ir o mais rápidopossível. Por favor, saiam da cama e vistam-se", disse ele, num tom de absolutadeterminação. "De absoluta determinação" aqui significa "que não dava margem adúvidas quanto à urgência dos jovens Baudelaire irem para a rua.Os órfãos Baudelaire deixaram a casa. O automóvel do sr. Poe seguiu, lento eofegante, pelas ruas calçadas com paralelepípedos em direção ao bairro da cidade ondemorava o conde Olaf. Passaram por carruagens puxadas por cavalos, passaram pormotocicletas ao longo da Passagem da Calmaria. Passaram pela Fonte Volúvel, ummonumento lindamente esculpido de que às vezes jorrava água, fazendo a diversão dacriançada. Atravessaram um vasto espaço de terra batida onde outrora ficavam os JardinsReais. Após algum tempo, o sr. Poe desceu com seu carro uma viela ladeada por casasde tijolos e parou a meio caminho do final do quarteirão."Cá estamos" , disse o sr. Poe, num tom de voz que tinha a intenção de seranimador. "Eis o novo lar de vocês."Os jovens Baudelaire olharam para fora e se depararam com a casa mais bonitado quarteirão. Os tijolos haviam recebido uma limpeza para valer, e pelas amplas janelas abertas dava para ver uma coleção de plantas bem tratadas. Diante da entrada da casa,com uma das mãos segurando a reluzente maçaneta de metal da porta, uma senhora decerta idade, elegantemente vestida, sorria para os Baudelaire. Na outra mão tinha umvaso de flores."Olá!", cumprimentou com muita simpatia. "Vocês devem ser as crianças que oconde Olaf está adotando."Violet abriu a porta do automóvel e saiu para cumprimentar a mulher com umaperto de mão. Sentiu um contato firme e caloroso, e pela primeira vez desde um temporazoavelmente longo sentiu que sua vida e a de seus irmãos poderiam enfim tomar umrumo feliz. "Sim", disse. "Somos nós, sim. Eu sou Violet Baudelaire, e este é meu irmãoKlaus, e esta é minha irmã Sunny. E este é o sr. Poe, que tem se encarregado de resolvertudo para nós desde a morte de nossos pais.""Soube do acidente", disse a mulher, enquanto todos terminavam de dizer "comovai?". "Sou Justice* Strauss.""Um prenome meio fora do comum", observou Klaus."É meu título", ela explicou, "não meu prenome. Sou juíza na Suprema Corte.""Fascinante!", disse Violet. "E é casada com o conde Olaf?"''Ah, não, imagine!", disse a juíza Strauss. "Na verdade, eu nem o conheço muitobem. Ele é apenas meu vizinho."Os meninos deslocaram o olhar, transferindo-o da casa lindamente conservadada juíza Strauss para a casa deploravelmente dilapidada que ficava ao lado. Os tijolosestavam encardidos e ensebados. Na fachada, só duas pequenas janelas, mantidasfechadas apesar de o dia estar muito bonito. Acima das janelas se erguia uma torre alta esuja, um pouco tombada para a esquerda. A porta da frente estava precisando serrepintada, e entalhada em seu centro havia a imagem de um olho. A construção inteiracaía para um dos lados, como um dente torto.(*) Justice pode, de fato, ser "Justiça" (como Klaus achou que fosse). Mas étambém o título usado na Inglaterra e nos Estados Unidos para designar."juiz da SupremaCorte". (N. T)"Oh!", disse Sunny, e todo mundo entendeu o que ela quis dizer. Ela quis dizer:"Que lugar mais terrível! Não quero ir morar lá de jeito nenhum!"."Bem, foi um prazer conhecer a senhora", disse Violet para a juíza Strauss. "Sim", disse a juíza, e indicou com um gesto o seu vaso de flores. "Quem sabevocês não aparecem qualquer dia desses para me ajudar na jardinagem?""Isso seria muito agradável", disse Violet muito tristemente. Sem dúvida, seriamuito agradável ajudar ajuíza Strauss em sua jardinagem, mas Violet não pôde deixar depensar que seria bem mais agradável morar na casa da juíza Strauss, e não na casa doconde Olaf. Que tipo de homem seria aquele, perguntou-se Violet, capaz de entalhar aimagem de um olho na sua porta da rua?O sr. Poe tocou com os dedos respeitosamente aba do seu chapéu para sedespedir da juíza Strauss, que sorriu para as crianças e em seguida desapareceu dentrode sua adorável casa. Klaus deu dois passos para a frente e bateu à porta do conde Olaf,com os nós dos dedos fazendo pontaria bem no centro do olho entalhado. Houve umapausa, e logo a porta se abriu com um rangido, e as crianças viram o conde Olaf pelaprimeira vez."Olá, olá, olá", disse o conde Olaf num murmúrio ofegante. Ele era muito alto emuito magro, e vestia um terno cinzento com várias manchas escuras. O rosto estavasem barbear e, no lugar das duas sobrancelhas que a maioria dos seres humanos possui,tinha uma única, bem comprida. Seus olhos brilhavam intensamente, o que lhe dava umaaparência de faminto e zangado ao mesmo tempo. "Olá, meus filhos. Entrem em seu novolar, mas antes esfreguem a sola dos sapatos ai fora, para não trazerem lama para dentrode casa."Quando entraram na casa, com o sr. Poe atrás, os órfãos Baudelaire perceberamo ridículo das palavras que o conde Olaf acabara de dizer. A sala em que se encontravamera o lugar mais sujo que já tinham visto, e um pouco de lama que trouxessem da rua nãoteria feito a menor diferença. Mesmo à luz fraca de uma única lâmpada presa num fio quependia do teto, as três crianças podiam ver que tudo naquela sala estava na maiorimundície, desde a cabeça empalhada de um leão pregada na parede até a tigela compedaços de maçã sem casca sobre uma mesinha de madeira. Klaus fez força para nãochorar quando passou os olhos à sua volta."Parece que esta sala está precisando de uma limpeza", disse o sr. Poe,tentando enxergar na penumbra reinante."Sei muito bem que minha humilde morada não se compara à mansão dosBaudelaire", disse o conde Olaf, "mas talvez com um pouco do seu dinheiro possamos lhedar um aspecto melhor." Os olhos do sr. Poe cresceram, tomados de surpresa, e sua tosse ecoou pelasala escura antes de ele falar. ''A fortuna dos Baudelaire", disse com firmeza, não seráusada para finalidades como essa. Na verdade, não será usada de forma nenhuma antesde Violet atingir a maioridade."O conde Olaf se virou para o sr. Poe com um piscar de olhos semelhante ao deum cão enfurecido. Por um instante Violet pensou que ele ia esbofetear o sr. Poe. Mas eleengoliu em seco - as crianças viram o seu pomo-de-adão se mexendo para cima e parabaixo dentro da garganta magrela - e deu de ombros."Tudo bem", disse, "para mim tanto faz. Muito obrigado, sr. Poe, por tê-los trazidoaté aqui. Meus filhos, agora deixem-me mostrar o seu quarto."''Adeus, Violet, Klaus e Sunny", disse o sr. Poe, encaminhando-se para a portada rua. "Espero que sejam muito felizes aqui. Continuarei a visitá-los ocasionalmente, evocês podem me procurar no banco se tiverem perguntas a fazer.""Mas nem sequer sabemos onde fica o banco",disse Klaus."Tenho um mapa da cidade", disse o conde Olaf."Adeus, sr. Poe. O conde se inclinou depressa para a frente a fim de fechar aporta, e os órfãos Baudelaire estavam mergulhados demais em seu desespero paraquerer se despedir do sr. Poe ainda uma última vez. Naquele momento teriam desejadomais que tudo continuar na casa do sr. Poe, apesar do mau cheiro. Em vez de olhar paraa porta, os órfãos olharam foi para baixo, e viram que, embora o conde Olaf estivessecalçado com sapatos, não estava usando meias. E dava para eles verem, no intervalo depele muito branca situado entre a surrada bainha da calça e o seu sapato preto, que oconde Olaf tinha tatuada a imagem de um olho em seu tornozelo, igual à do olho em suaporta da rua. Ficaram imaginando quantos outros olhos não haveria na casa do condeOlaf, e veio-lhes um pressentimento de que, para o resto de sua vida, estariam sempre sesentindo sob a estreita vigilância do conde Olaf, mesmo quando ele não estivesse porperto.   

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