1

181 17 15
                                    

Há exatos 364 dias, eu o conheci.

Era o primeiro dia de verão e eu literalmente pingava de suor ao andar embaixo do Sol de 12h18, segundo meu celular. Minha mãe e eu íamos ao supermercado à duas quadras de casa — mas que, naquele dia, parecia uma caminhada de dois quilômetros no Saara escaldante no dia mais quente de sua história.

"Carolina, se você ficar se arrastando igual a uma lesma nesse Sol, vai suar mesmo. Vamos rápido, lá dentro do mercado tem ventilador e você pode ficar reclamando sozinha em frente a ele enquanto eu vou pegar os ingredientes que faltaram para o almoço," Viviane, doce mamãe, reclamou de minha lentidão. 

Suspirei e balancei a minha camiseta preta ao mesmo tempo em que aumentava minha velocidade para alcançá-la. Eu precisava de água urgentemente, senão iria desmaiar no meio da rua e viraria o motivo das fofocas do bairro por uma semana.

"Por que nós não viemos de carro?" perguntei irritada. Havia uns quatro carros em casa e umas sete pessoas que poderiam dirigir, caso minha mãe não quisesse. Porém, claro que ela quis ir à pé e me sequestrar para esse martírio. "A família inteira está em casa e, convenhamos, eu não sou a melhor assistente na área de carregar coisas," afirmei. E arrependi-me no instante seguinte, quando recebi uma expressão tão intensa que, se mamãe fosse o Ciclope de X-Men, eu estaria estatelada na parede ao lado da farmácia do outro lado da rua.

"Não começa, Maria Carolina Almeida!" Viviane bradou, até esquecendo-se de que estávamos no meio da rua e que eu estava morrendo de calor (e que irritada eu sentia ainda mais calor).

"Para de agir como se eu tivesse que levar isso a sério, mãe. Às vezes parece que você quer me ver mal, quer me deixar triste. É levando no humor que eu consigo me olhar no espelho e pensar 'É, eu sou linda de qualquer jeito'. Então, por favor, para de se comportar como se isso tivesse acontecido com você. Sério, mãe. Por favor," supliquei, gradativamente diminuindo meus passos. Sempre a mesma discussão. Sempre meus mesmos pedidos não atendidos. Meus olhos encheram-se d'água involuntariamente.

"Carol..." mamãe murmurou. "Eu só não quero que você se perca em uma fantasia, você sabe disso. Eu não sei lidar tão bem quanto você. Desculpa," terminou, puxando-me para um abraço lateral.

"Eu só quero que você pare de falar como se o braço direito que me falta fosse a coisa mais importante sobre mim. Eu sou linda. Meu cabelo natural e eu. Minha pele negra e eu. Minhas duas pernas, meu braço e eu," desabafei.

"Tudo bem. Desculpa. Eu só não consigo evitar ficar triste," a mulher curvilínea, uma das únicas características que herdei dela, admitiu, sorrindo timidamente. Meus olhos eram a mistura do verde musgo da mulher à minha frente e dos olhos castanhos de meu pai. Âmbar. Lindos. Eu era linda. Minha mãe e meu pai eram altos, eu não — ser pequena era um traço que vinha de minha avó materna que, naquele momento, provavelmente fazia compras para passar o natal estonteante em casa.

"Ok, mãe, podemos ir agora? Eu estou realmente desidratando sem uma sombra e um ventilador para me acudirem," reclamei, segurando seu braço e puxando-a em direção ao supermercado. Ouvi sua graciosa risada enquanto corríamos para abrigo no mercado que já estava ali perto.

Adentramos a enorme porta do recinto e nos separamos. Viviane foi buscar as coisas escritas na lista enquanto eu fui atrás de uma garrafa pequena de refrigerante de limão, já que ninguém mais da minha enorme família bebia as mesmas coisas que eu. Essencialmente, viviam à base de cerveja e eu, por outro lado, de tudo que não fosse cereal fermentado.

Fui até as geladeiras, fiquei alguns segundos fingindo que estava escolhendo para aproveitar a brisa gelada e peguei minha bebida favorita. Paguei-a e saí, esperando minha mãe em frente à loja, mas ainda embaixo da cobertura. Apoiei a garrafa no corrimão e tentei abri-la, sem sucesso, porque ora ela escorregava sozinha, ora faltava força no meu braço. Bufei frustrada. Belo auxílio do universo.

Porém, a ajuda veio.

A ajuda veio em forma de Bruno Kammers, o novo ajudante temporário, que riu do meu infortúnio até perder a vergonha e vir abrir a garrafa para mim, porque, aparentemente, naquele horário, as únicas pessoas que se aventuravam a sair do local ventilado éramos nós. Ele, por ser obrigado a carregar a moto-entrega a cada segundo e eu, por odiar pessoas encarando-me com olhares de pena, mesmo que morássemos no mesmo lugar desde que eu sofri o acidente.

"Dá aqui," ouvi a voz masculina surgir atrás de mim, sem um pingo de educação. "Eu abro para você, gatinha."

"Não dou nada para quem me chama de 'gatinha', nem meu refrigerante," protestei, segurando a garrafa de forma protetora, como se aninhasse um filhote.

"Então fica aí passando sede," o garoto vociferou e eu tive que refrear minha vontade de mostrar a língua. Belo exemplo de empregado.

Eu não ia deixar um desconhecido agir dessa forma comigo, então vi que uma mulher estava saindo e educadamente me aproximei. "Oi, desculpa atrapalhar, mas a senhora pode me ajudar a abrir esse refrigerante?" pedi.

Mal terminei de falar e senti alguém pegar a garrafa da minha mão, sem permissão. "Não, dona Ana, pode deixar que eu abro para ela," justificou-se pelo comportamento obviamente inadequado com a loira, que sorriu assentindo e se despediu. Mas não se desculpou comigo.

Que babaca!

"Não era para eu passar sede?" alfinetei, ao receber de volta meu refrigerante, agora devidamente aberto.

"Se quiser, eu ainda posso beber a garrafa inteira," retrucou e eu virei o rosto para o outro lado, resmungando. Logo mamãe saiu do supermercado e nós fomos embora, ignorando o garoto que ficou nos encarando, com culpa claramente estampada em sua expressão.

89 Dias & Uma CartaOnde histórias criam vida. Descubra agora