Capítulo 01 - Plumo

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   Era o menininho mais esquisito que já vira em toda sua vida, e embora ele tivesse o rosto quase todo coberto de sardas e uma irreverente expressão de curiosidade no olhar, Carlota logo soube, de alguma forma, que ele era um anjo.

   Ela sorriu, deixando escapar alguma coisa que pareceu um grito de encantamento. E naquele momento, o que ela sentiu foi exatamente a mesma sensação de ser criança e estar abrindo os olhos pela primeira vez. Ela sentiu como se ainda tivesse uma mamãe por perto, que a balançaria em seu colo e cantaria canções de ninar para que ela pudesse dormir.

   Há muito tempo Carlota já não era mais criança, e pensava já ter se esquecido como se faz para abrir os olhos pela primeira vez. Mas ao ver a pequena e fascinante criaturinha bem ali diante de seus olhos, ela recordou, e por um instante teve a estranha certeza de que voltava a ser criança, outra vez.

   — Olá... Você parece ter se machucado. — Ela pensou que aquelas seriam as palavras corretas para iniciar uma conversa com um anjo que acabara de cair pela chaminé de sua casa e só agora começava a se levantar, dando-se alguns tapas de leve para espanar o pó de lareira que havia tomado conta de seu corpo inteiro.

   De início, ele não disse nada, apenas a fitou com olhinhos que Carlota logo pensou serem os mais fascinantes que alguém deveria ter. Havia neles alguma coisa que não era exatamente o que ela esperava encontrar nos olhos de um anjo.

   Carlota sempre imaginara os anjos como seres calmos e serenos, com cachinhos louros e as duas maçãs do rosto o suficientemente coradas. Eram assim que eles costumavam aparecer nos quadros, e nos livros de figura também. De tal forma que parecia no mínimo um tanto estranho que estivesse vendo um que fosse ruivo, e que tinha tantas sardas das quais seriam impossíveis contar. Ele não parecia, de fato, nem um pouco calmo ou sereno.

   Ainda assim, Carlota sabia que ele era um anjo.

   E foi quando ele desatou a falar.

   — Ora, talvez eu tenha mesmo me machucado, um pouquinho, aqui e ali. Mas de qualquer forma, já tive quedas maiores. Na verdade, acho que estou sempre tendo quedas e me envolvendo em confusões como essa. Dizem que sou desastrado, e acho que é verdade, mesmo. Nunca sei como me comportar.

   Ao ouvir aquilo, Carlota arregalou os olhos e não pôde segurar uma boa risada. E embora já não tivesse muitos dentes na boca, ela riu exatamente como uma criança.

   — Você está rindo, eu sabia que isso ia acontecer. É o que sempre fazem, quando digo alguma coisa. E eu quase nunca sei o motivo.

   — Deveria saber que diz coisas esquisitas.

   — Ah, sim, acho que eu sei. Acho que me lembro de alguém já ter me dito isso, uma vez.

   Carlota riu – se novamente — Você ainda não me disse seu nome. Tudo o que sei é que é um anjo, que caiu como uma estrela cadente pela chaminé da minha sala de estar e agora diz coisas esquisitas.

   O anjinho pareceu pensativo por alguns instantes, e o que ele pensou ninguém sabe. O que se sabe é que depois de algum tempo, o que ele disse foi o seguinte:

   — Meu nome é Plumo, mas acho que isso não tem muita importância, você soube quem eu era antes mesmo que eu falasse — e pela primeira vez, desde que fora parar ali, ele não se preocupou em esconder as asas, que até então vinham muito bem encolhidas em algum canto das suas costas. Carlota, que só tinha visto asas de pássaros, as achou um tanto encantadoras.

   — Plumo... – Ela disse, quase que para si mesma — Pensei mesmo que fosse algo assim.

   — Pensou? Pois vou tentar adivinhar o seu também, espere só! Anna... Margarida... Carlota... Hum, não sei. Me parece difícil, eu não sei ainda muitas coisas sobre você, a não ser que tem os cabelos exatamente das cor das nuvens e que toca algum tipo de harpa.

   — Você disse Carlota! É esse meu nome, você acertou! Mas porque diz que toco algum tipo de harpa? Está falando disso? — e deslizou os dedos pelo piano da sala de estar, fazendo um som muito agradável que Plumo reconheceu imediatamente.

   — Oh! É disso sim! É um som maravilhoso, não acha? Eu o escutei, enquanto sobrevoava essas casas, e senti que deveria chegar mais perto da sua chaminé para ouvir melhor. Foi quando o acidente aconteceu, eu acho, e tudo que me lembro é que quando abri os olhos, eu estava aqui, sujo com esse pó de lareira.

   Carlota estava achando aquilo tudo muito fascinante, mas seus olhos brilharam de uma maneira especial  com o que ele dissera sobre "sobrevoar". Ali, no fundo, aquilo a despertara um sentimento antigo, que de algum modo, a fez sorrir.

   — Voar! Imagino que seja muito contente de poder fazer isso sempre que quiser. Ah, se eu tivesse asas como as suas e vivesse por aí perambulando no ar!

   — Oh, mas é claro que fico contente! Tão contente que poderia gritar o mais alto dos gritos e levantar voos de felicidade agorinha mesmo! — E seria justamente o que ele teria feito, se naquele mesmo momento não tivesse notado que seus pés não subiam mais que dois palmos do chão.

   Provavelmente, alguma coisa durante a queda teria provocado aquilo. Ele não conseguia mais voar.

   Gritou, o mais alto dos gritos, como ele previa, mas não era de felicidade. Era um grito de dor que ecoava pela sala de estar da casa de Carlota.

   — Não, não, não.

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