Capítulo 04 - Poeira

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   Havia poeira em suas pequenas asas, mas não era poeira qualquer, e foi porque ele sabia disso que Plumo sentiu uma pontada de medo lhe percorrer o corpo, e não viu quando uma gota salgada pulou do olho esquerdo e rolou pela sardas. 

   A gota que caiu, no entanto, não era maior que o soluço que vinha de um par de asas enferrujado. Era um soluço tão fraco e tímido que qualquer pessoa não o teria ouvido. Mas Plumo ouviu.  

   E com a pontinha dos dedos, lhe enxugou a poeira. É cruel ter que dizer isso, mas Plumo lançou às asas um olhar demorado, perdendo-se ali pelo que pareceu mais que alguns minutos, e havia em seus olhos a expressão de quem sabia que, em breve, elas deixariam de existir. 

   Como estavam pequenas agora! Haviam sido tão grandes num outro tempo... Correu os dedos pelas plumas, aquelas mesmas plumas que o haviam levado à lugares extraordinários acima do sol e das nuvens, que, provavelmente, ele nunca voltaria a ver. 

   Fechou os olhos, e por um pequeno instante, pensou estar outra vez sobrevoando casas, espiando suas chaminés e se envolvendo em quedas. Sentiria falta daquilo. Sempre fora tão desastrado! Nunca sabia como se comportar. E riu. Mesmo entre as gotas salgadas que insistiam em ainda brotar nos olhos, ele riu. 

   — Adeus... — Ele disse isso com um aperto no peito, e sua voz cambaleou no que foi quase um sussurro. 

   Não havia muito o que pudesse ser feito. É esse o ofício das asas que desaprendem a bater. Tão logo se cobrem de poeira, começam a sempre diminuir de tamanho, até que um dia estarão tão pequenas que quase não passarão de pó. 

   Plumo se tornaria um garotinho comum. 

   E mais uma vez, ele gritou, o mais alto dos gritos. Tão triste e aflito quanto o primeiro, mas dele não saiu nenhum som. E o anjinho apenas descobriu ali mesmo que os mais altos gritos, na verdade, acontecem no silêncio. 

   Mas em algo ele tinha se enganado. Asas nunca somem por completo. Podem passar algum tempo adormecidas, é verdade, sem que possam ser vistas. Mas ainda estarão lá, escondidas em algum canto de si, apenas esperando pelo sopro que lhes dará vida outra vez. 

   Um sopro, uma corda. Asas, ás vezes, podem ser como caixinhas de música. 

                                                                               ***


   — Carlota... — O anjinho cochichou — Poderíamos andar pelos telhados, e eu te ensinaria a soprar sonhos para as pessoas que estiverem dormindo, como os anjos fazem. 

   — Oh, você não acha que estou velha demais para escalar telhados? Os meus ossos não aguentariam. — Mas com o brilho de quem por trás dos ossos velhos esconde uma criança, ela acrescentou — Mas quem sou eu para recusar tão insensato convite? Os ossos é que tratem de aguentar! 

   E se pôs logo a procurar escada. 

   O anjinho gargalhou, tomado de completo êxtase, e a gata Emengarda veio se aconchegar em seu ombro, como se dissesse que queria ir também. 

   — Virá conosco, Emengarda. — Carlota disse — Me parece que a sua mania de sumir de vista pelas casas vizinhas arrumou jeito de servir para alguma coisa. Você será uma espécie de guia-telhado. 

   Emengarda não sabia o que era uma 'guia telhado', mas fingiu que sabia, fazendo que sim com a cabeça. 

   — Vá devagar. Suba um degrau primeiro, depois o outro. — Ela olhou diretamente para o anjinho — Ou além de asas enferrujadas, terá também pernas quebradas. Creio que não gostaria muito disso, senhor Plumo. — E caíram numa risada que não parecia mais ter fim. Até Emengarda riu. Da maneira dela, é claro, mas eu juro que ela riu.

   — Costumávamos sentar na beirada das janelas das casas,   — Plumo disse depois de algum tempo, deixando que a brisa gelada lhe esvoaçasse os cabelos desgrenhados — e ali podíamos passar uma noite inteirinha... Será, Carlota, será que podemos nos esbarrar com um anjo pousado em alguma janela por aí? 

   — Se deixarmos nossos olhos bem abertos, pode ser que sim. 

   — Eu vou deixar. Eu deixar, sim! — e foi naquele momento que, por alguma razão, ele criou coragem para confessar aquilo que até então havia mantido em segredo — Carlota, existe algo que eu ainda não te contei. 

   — Pois conte. 

   — Estou me tornando um menininho. Um menininho comum. As plumas de minhas asas estão se soltando. Elas desaparecem um pouco mais á medida que o tempo passa, e eu acho que, em breve, não sobrará mais nada delas. 

   Carlota pareceu pensativa, mas em seus olhos não havia surpresa. É estranho, mas é como se, de alguma forma, ela já soubesse que seria exatamente isso o que aconteceria. 

   E naquele momento, um telhado rangeu. 

   Plumo se envolvia em uma nova queda. Só que, dessa vez, ele não estava sozinho. 

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⏰ Última atualização: Jan 24, 2018 ⏰

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