Capítulo 03 - Fechar os Olhos

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   É mesmo estranho, confesso, mas ás vezes, fechar os olhos é a melhor maneira de deixa-los bem abertos.

   Plumo só pôde ficar sabendo disso naquela noite. Existem poucas coisas que uma criaturinha sardenta e de olhar irreverente realmente não saiba, e essa era uma delas.

   A verdade é que Plumo nunca precisara fechar os olhos. Ele passara tempo demais se ocupando com as coisas maravilhosas que poderia ver caso os mantivesse abertos, e é mesmo uma pena que tivesse  se esquecido do prazer de senti-los pesarem, pesarem, até chegar ao ponto de estarem tão pesados que não consigam fazer outra coisa senão fechar-se, de uma vez.

   Me arrisco a dizer que aquela foi a primeira vez que ele sonhou, embora nunca alguém possa ter realmente certeza disso. Nem mesmo o próprio Plumo. Ele pensava se lembrar de outras vezes, mas eram memórias tão distantes e ele estava sempre vivendo aventuras tão dignas de ser sonhadas que ás vezes ele se perguntava se haviam mesmo sido sonhos.

   Dessa vez, no entanto, ele jamais teria dúvidas.

   Ele próprio se lembrava de algumas vezes em que se sentara na beirada das janelas das casas e se encarregara de soprar pensamentos felizes para as pessoas que estivessem dormindo. É algo que os anjos costumam fazer, embora eles nem sempre consigam a proeza de chegar á tempo e ser mais rápidos que os pesadelos.

   Plumo abriu um sorriso. Ninguém mesmo poderia compreender a magia que existe por trás dos sonhos tão bem quanto ele.

   E então, ele voou. Voou para onde estava o seu primeiro abrir de olhos, e pôde ver que um anjinho de cabelos ruivos e desgrenhados gargalhava de maneira esquisita. Ele dançava, mas não da forma tênue e delicada como dançam os anjos. Ele dançava da forma mais desengonçada e desastrosa que você já viu alguém dançar, e ainda assim, ele conseguia ser encantador.

   Ele está chegando mais perto, agora, veja só. É o momento em que você pode perceber que ele não é mesmo como nenhum outro anjo que existe no céu. Se ele devolver o olhar, é provável que logo inicie uma conversa, e então você verá o quanto ele é extraordinário.

   —Eu voei, Carlota, eu voei! - Ele desceu as escadas apressadamente naquela manhã, afobado. — E a cidade todinha voou também. Primeiro, as pessoas começaram a sair uma a uma de suas casas, flutuando, pela chaminé, e depois de algum tempo, até as casas estavam voando. E assim fomos nós, Carlota, pelo ponto mais alto do céu. 

Carlota tirou os olhos do piano, e o fitou, impressionada.

—É fascinante!— Ela correu até a janela, pensando que toda aquela história lhe dera uma deliciosa vontade de sair voando também.

Ela quase pensou sentir suas pernas cansadas se tornando mais ágeis, e seus cabelos brancos pouco a pouco voltando a cor. Estranho, Plumo a fizera se sentir assim desde o primeiro momento que ela o vira.

— Eu também tive um sonho essa noite. — Ela achou que deveria dizer, enfim, ainda virada para a janela, e ao mesmo tempo, tão distante dali.

— Teve, mesmo? — Plumo correu até ela, os olhinhos irreverentes faiscando interesse.

— Tive sim. É um sonho que estou sempre tendo, na verdade, mas dessa vez, eu pude sentir como se ele fosse mesmo real — Ela parecia sorrir — Sabe, Plumo, eu gostaria que ele fosse real.

Plumo a olhava com admiração.

— Conte - me.

—É uma longa história, Plumo.

—Eu gostaria de ouvir.

— Eu lhe contarei, então. —Ela agora caminhava pela sala de estar — Tudo isso começou há muito tempo, na verdade, quando minhas faces ainda eram coradas, e o meu cabelo ainda pendia formando cachos. — Plumo poderia ter jurado que enquanto ela falava, suas faces pareciam mesmo estar coradas, e seu cabelo parecia mesmo pender formando cachos. - Eu fui uma musicista, Plumo, uma artista de sucesso.

Ele escutava tudo com muita atenção.

—Me apresentei em concertos musicais famosos, em grandes cidades da Inglaterra e da França, e com isso pude ter um belo vislumbre do mundo. Ele é enorme, Plumo, e você deve saber disso melhor do que eu.

Duas pequenas lágrimas começaram a se formam em seus olhos, e Plumo concluiu que elas deviam ser de felicidade, por ela ter vivido coisas tão maravilhosas, e poder agora se lembrar delas. Ou talvez fossem de saudade.

—Fui também atriz. —Ela continuou— Estive em grandes peças de teatro, e o palco era pra mim como um mundo todo. Porque ali eu podia ser qualquer coisa, Plumo. Qualquer coisa eu que ousasse sonhar. Eu podia morrer como a Julieta de Shakespeare e no dia seguinte renascer como uma deusa da Grécia. Era como se me deixassem voltar ao mundo todos os dias, em um novo cenário, figurino e trilha sonora. Ah, Plumo, como eu gostaria de poder estar nos palcos mais uma vez! Ao menos mais uma vez...

As lágrimas escorriam, agora, e ainda assim, ela continuava sorrindo.

— Meus sonhos tem sido só sobre isso. Na maioria deles eu estou num centro, cercada por pessoas de todos os lados, num enorme salão, quando eu começo a tocar. E então elas sorriem pra mim, se colocando de pé para me aplaudir. Eu... Eu me sinto no céu.

— Deve haver algum jeito... Deve haver... — Plumo repetia, para si mesmo.

— Sabe, Plumo... Quando você percebeu que tinha se machucado e que não poderia mais voar sabe-se lá até quando, eu acho que soube exatamente como você se sentiu.

— Eu... Eu não sabia.

—Existem muitas coisas sobre mim que você ainda não sabe, a não ser que eu tenho os cabelos exatamente da cor das nuvens e que eu toco algum tipo de harpa. - Ela riu - se, brincando com o que ele dissera na noite anterior, quando se viram pela primeira vez.

—Eu sei também que você coleciona uma porção de caixinhas de músicas, para ajudar a libertar as fadas, e livros, que são uns objetos mágicos que nos levam á terras distantes, princesas no alto de torres, príncipes montados á cavalo, castelo, espadas.

— Os livros e as caixinhas de música! Essas foram as formas mais próximas que eu encontrei de... de voar. — Ao dizer essa última palavra, ela lançou um olhar brincalhão á Plumo.

— De voar! Oh!— Ele deixou escapar uma gargalhada, e imediatamente se pôs a dançar pela sala de estar.

—Plumo, o que acha de irmos lá fora, agora? Podemos ir ao Bosque. Tenho a leve impressão de que as crianças adorariam lhe conhecer. E Emengarda também. Os passarinhos eu creio que você já conhece.

— Emengarda?

— Oh, sim. É a minha gata de estimação. Ela não esteve aqui essa noite, e até agora ainda não apareceu, de modo que você ainda não pôde conhecê-la. Mas no Bosque eu hei de encontrá-la, aposto...

—Bosque?

— Sim. É pra onde eu vou, todas as manhãs, tocar um pouquinho de flauta para quem quiser me escutar. Vamos pra lá agora!

—Flauta? É outra espécie de harpa?

— Exatamente. Eu não levo o piano porque ele é muito pesado — Ela disse, apanhando o objeto e fazendo sinal para que Plumo notasse o terninho que ela havia cerzido.

—Vista - o. Eu o costurei pra você, já que não sabemos até quando terá que esconder as asas e se passar por um menininho comum.

E então, ele vestiu, antes mesmo que a porta começasse a se abrir, lentamente, revelando um lugar que Plumo logo pensou que era mesmo de saltar os olhos.

Alguns passarinhos o reconheceram, e vieram o bicar carinhosamente.

— Carlota... Você me disse que conheceu cidades da Inglaterra e da França... E que gostaria de estar nos palcos mais uma vez. Me diga, como veio parar aqui?

Carlota encarou o horizonte.

— Essa é mais uma história muito longa, Plumo, mas eu posso contar á você, se quiser.

—Eu quero.

— Prometo contar - lhe, se você me prometer contar também histórias sobre o céu.

— Hum... Eu preciso pensar. Está bem, eu prometo.

Eles gargalham, se tornando pontinhos cada vez menores e desaparecendo no horizonte.

E então, eles souberam. Seriam felizes, enquanto estivessem juntos.


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