VII

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Eram onze horas da noite.
Toda a casa estava em silêncio.
Algumas luzes esclareciam ainda uma das salas interiores, que fazia parte do aposento que D.
Maria destinara a seus dois filhos.
Jorge, em pé no meio desta sala, de braços cruzados, fitava um olhar de profunda
angústia em uma porta envidraçada, através da qual se viam suavemente esclarecidas as alvas
sanefas da cortina.
Era a porta do quarto de sua noiva.
Duas ou três vezes dera um passo para dirigir-se àquela porta, e hesitara; temia
profanar o santuário da virgindade; julgava-se indigno de penetrar naquele templo sagrado de um
amor puro e casto.
Finalmente tentou um esforço supremo; revestiu-se de toda a sua coragem e atravessou a sala com
um passo firme, mas lento e surdo.
A porta estava apenas cerrada; tocando-a com a sua mão trêmula, o moço abriu
uma fresta e correu o olhar pelo aposento.
Era um elegante gabinete forrado com um lindo papel de cor azul-celeste, tapeçado de lã de cores
mortas; das janelas pendiam alvas bambinelas de cassa, suspensas às lanças douradas.
A mobília era tão simples e tão elegante como o aposento: dois consolos de
mármore, uma conversadeira, algumas cadeiras e o leito nupcial, que se envolvia nas longas e alvas
cortinas, como uma virgem no seu véu de castidade.
Era, pois, um ninho de amor este gabinete, em que o bom gosto, a elegância e a
singeleza tinham imprimido um cunho de graça e distinção que bem revelava que a mão do artista
fora dirigida pela inspiração de uma mulher.
Carolina estava sentada a um canto da conversadeira, a alguns passos do leito,
no vão das duas janelas; tinha a cabeça descansada sobre o recosto e os olhos fitos na porta da sala.
A menina trajava apenas um alvo roupão de cambraia atacado por alamares
feitos de laços de fita cor de palha; o talhe do vestido, abrindo-se desde a cintura, deixava entrever
o seio delicado, mal encoberto por um ligeiro véu de renda finíssima.
A indolente posição que tomara fazia sobressair toda a graça do seu corpo, e
desenhava as voluptuosas ondulações dessas formas encantadoras, cuja mimosa carnação percebia-
se sob a transparência da cambraia.
Seus longos cabelos castanhos de reflexos dourados, presos negligentemente,
deixavam cair alguns anéis que se espreguiçavam languidamente sobre o colo aveludado, como se
sentissem o êxtase desse contato lascivo.
Descansava sobre uma almofada de veludo a ponta de um pezinho delicado, que
rocegando a orla do seu roupão deixava admirar a curva graciosa que se perdia na sombra.
Um sorriso, ou antes um enlevo, frisava os lábios entreabertos; os olhos fixos na
porta vendavam-se às vezes com os seus longos cílios de seda, que, cerrando-se, davam uma
expressão ainda mais lânguida ao seu rosto.
Foi em um desses momentos que Jorge entreabriu a porta e olhou: nunca vira a
sua noiva tão bela, tão cheia de encanto e de sedução.
E entretanto ele, seu marido, seu amante, que ela esperava, ele, que tinha a felicidade ali, junto de
si, sorriu amargamente como se lhe houvessem enterrado um punhal no coração.
Abriu a porta, e entrou.
A moça teve um leve sobressalto; e, dando com os olhos no seu amante, ergueu-
se um pouco sobre a conversadeira, tanto quanto bastou para tomar-lhe as mãos e engolfar-se nos
seus olhares.
Que muda e santa linguagem não falavam essas duas almas, embebendo-se uma
na outra! Que delícia e que felicidade não havia nessa mútua transmissão de vida entre dois
corações que palpitavam um pelo outro!
Assim ficaram tempo esquecido; ambos viviam uma mesma vida, que se comunicava pelo fluido
do olhar e pelo contato das mãos; pouco a pouco as suas cabeças se aproximaram, os seus hálitos se
confundiram, os lábios iam tocar-se.
Jorge afastou-se de repente, como se sentisse sobre a sua boca um ferro em brasa; desprendeu as
mãos, e sentou-se pálido e lívido como um morto.
A menina não reparou na palidez de seu marido; toda entregue ao amor, não tinha outro
pensamento, outra idéia.
Deixou cair a cabeça sobre o ombro de Jorge; e, sentindo as palpitações do seu coração sobre o
seio, achava-se feliz, como se ele lhe falasse, lhe olhasse e lhe sorrisse.
Foi só quando o moço, erguendo docemente a fronte da menina, a depôs sobre o recosto da
almofada, que Carolina olhou seu amante com surpresa, e viu que alguma coisa se passava de
extraordinário.
- Jorge, disse ela com a voz trêmula e cheia de angústias, tu não me amas.
- Não te amo! exclamou o moço tristemente; se tu soubesses de que sacrifícios
é capaz o amor que te tenho!...
- Oh! não, continuou a moça, abanando a cabeça; tu não me amas! Vi-te todo
o dia triste; pensei que era a felicidade que te fazia sério, mas enganei-me.
- Não te enganaste, não, Carolina, era a tua felicidade que me entristecia.
- Pois então saibas que a minha felicidade está em te ver sorrir. Vamos, não me
ames hoje menos do que me amavas há dois meses!
- Há dois momentos, Carolina, em que o amor é mais do que uma paixão, é
uma loucura; é o momento em que se possui ou aquele em que se perde, o objeto que se ama.
A menina corou e abaixou os olhos sobre o tapete.
- Dize-me, tornou ela para disfarçar a sua confusão, o que sentiste hoje no
momento em que as nossas duas mãos se uniram sob a bênção do padre?
Jorge estremeceu, e ia soltar uma palavra que reteve; depois disse com algum
esforço:
- A felicidade, Carolina.
- Pois eu senti mais do que a felicidade; quando nossas mãos se uniam tantas
vezes e que nós conversávamos horas e horas, eu era bem feliz; mas hoje, quando ajoelhamos, não
sei o que se passou em mim; parecia-me que tudo tinha desaparecido, tu, eu, o padre, minha mãe, e
que só havia ali duas mãos que se tocavam, e nas quais nós vivíamos!
O moço voltou o rosto para esconder uma lágrima.
- Vem cá, continuou a moça, deixa-me apertar a tua mão; quero ver se sinto
outra vez o que senti. Ah! naquele momento parecia que nossas almas estavam tão unidas uma à
outra que nada nos podia separar.
A moça tomou as mãos de Jorge, e, descansando a cabeça sobre o recosto da
conversadeira, cerrou os olhos e assim ficou algum tempo
- Como agora!... continuou ela, sorrindo. Se fecho os olhos, vejo-te aí onde estás. Se escuto, ouço a
tua voz. Se ponho a mão no coração, sinto-te!
Jorge ergueu-se; estava horrivelmente pálido.
Caminhou pelo gabinete agitado, quase louco; a moça o seguia com os olhos; sentia o coração
cerrado; mas não compreendia.
Por fim o moço chegou-se a um consolo sobre o qual havia uma garrafa de Chartreuse e dois pequenos copos de cristal. Sua noiva não percebeu o movimento rápido que ele
fez, mas ficou extremamente admirada, vendo-o apresentar-lhe um dos cálices cheio de licor.
- Não gosto! disse a menina com gracioso enfado.
- Não queres então beber à minha saúde! Pois eu vou beber à tua.
Carolina ergueu-se vivamente e, tomando o cálice, bebeu todo o licor.
- Ao nosso amor!...
Jorge sorriu tristemente.
Dava uma hora da noite.

A viuvinha José de Alencar Onde histórias criam vida. Descubra agora