XIV

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As últimas palavras do velho negociante esclareceram um mistério que já se
achava quase desvanecido.
Jorge era o verdadeiro nome desse moço que morrera para o mundo, e que durante cinco anos
vivera como um estranho sem família, sem parentes, sem amigos, ou como uma sombra errante
condenada à expiação das suas faltas.
A página em que eu devia ter escrito as circunstâncias desse fato ficou em
branco, minha prima; agora, porém, podemos lê-la claramente no espírito de Jorge, que, sentado à
sua carteira, triste e pensativo, repassa na memória esses anos de sua vida, desde a noite do seu
casamento.
Acompanhando o moço no seu sinistro passeio às obras da Santa Casa de
Misericórdia, o vimos sumir-se por entre os cômoros de areia que se elevavam por toda essa vasta
quadra em que está hoje assentado o Hospital de Santa Luzia.
O vulto que o seguia de perto, embuçado em uma capa e tomando todas as precauções para não ser
conhecido nem pressentido pelo moço, desapareceu como ele nas escavações do terreno.
Jorge, como todo homem que depois de longa reflexão toma uma resolução firme e inabalável,
estava ansioso por chegar à peripécia desse drama terrível; por isso parou no primeiro lugar que lhe
pareceu favorável ao seu desígnio.
Mas um espetáculo ainda mais horrível do que o seu pensamento apresentou-se a seus olhos; viu a realização dessa idéia louca que desde a véspera dominava o seu espírito.
Um infeliz, levado pela mesma vertigem, o tinha precedido; seu corpo jazia sobre a areia na mesma
posição em que o surpreendera a morte instantânea, meio recostado sobre o declive do terreno.
A cabeça era uma coisa informe; o tiro fora carregado com água para tornar a
explosão surda e mais violenta; as feições haviam desaparecido, e não deixavam reconhecer o
desgraçado.
Naturalmente quis ocultar a sua morte, para poupar à sua família o escândalo e a
impressão dolorosa que sempre deixam esses atos de desespero.
Aquele espetáculo horrorizou o moço: em face da realidade seu espírito recuou;
houve mesmo um instante em que se espantou da sua loucura; e voltou o rosto para não ver esse
cadáver, que parecia escarnecer dele.
Mas a lembrança do que o esperava, se voltasse, triunfou; julgou-se irremissivelmente condenado;
e chamou covardia o grito extremo da razão que sucumbia.
Tirou as suas pistolas, e armou-as sorrindo tristemente; depois ajoelhou e
começou uma prece.
Desvario incompreensível da criatura que, ofendendo a Deus, ora a esse mesmo
Deus! Demência extravagante do homem que pede perdão para o crime que vai cometer!
Quando o moço, terminada a sua prece, erguia as duas pistolas e ia aplicar os
lábios à boca da arma assassina, o vulto que o tinha acompanhado, e que se achava nesse momento
de pé, atrás dele, com um movimento rápido paralisou-lhe os braços.
Jorge ergueu-se precipitadamente, e achou-se em face do homem que se opusera
à sua vontade de uma maneira tão brusca.
Era o Sr. Almeida.
O velho, com a sua perspicácia e com os exemplos de tantos fatos semelhantes
em uma época em que dominava a vertigem do suicídio, adivinhara as intenções do moço.
Aquela pronta resignação, aquela espécie de contradição entre os nobres
sentimentos de Jorge e a calma que ele afetava, deram-lhe uma quase certeza do que ele planejava.
Não quis interrogá-lo, convencido que lhe negaria. Resolveu espiá-lo durante
aquela noite, até que pudesse avisar a Carolina do que se passava, a fim de que ela defendesse pelo
amor uma vida ameaçada por loucos prejuízos.
Sua expectativa realizou-se; recostado no muro da chácara que ficava fronteira
às janelas do quarto da noiva, acompanhou por entre as cortinas toda a cena noturna que descrevi;
conheceu a agitação do moço, viu-o deitar algumas gotas de ópio no cálice de licor que deu à sua
mulher; não perdeu nem um incidente, por menor que fosse.
Um instante, enquanto o moço meditava, com os olhos no mostrador do seu
relógio, o Sr. Almeida receou que ele quisesse fazer do quarto da noiva um aposento mortuário;
mas respirou quando o viu saltar na rua.
Seguiu-o, e, pela direção adivinhou o desenlace da cena de que fora espectador;
preparou-se, pois, para representar também o seu papel; e por isso achava-se em face de Jorge no
momento supremo em que a sua intervenção se tornara necessária.
O primeiro sentimento que se apoderou do moço, vendo o Sr. Almeida, foi o do
pejo; teve vergonha do que praticava e pareceu-lhe fraqueza aquilo que há pouco julgava um ato de
heroísmo.
Logo depois o despeito e o orgulho sufocaram esse bom impulso.
- Que veio fazer aqui? perguntou com arrogância.
- Evitar um crime, respondeu o velho com severidade.
- Enganou-se, disse Jorge secamente.
- Não me enganei, porque estou certo de que não há homem que depois de
escutar a razão cometa semelhante loucura. Qual é o benefício que lhe pode dar a morte?
- Salvar-me da desonra.
- Uma desonra não lava outra desonra. O homem que atenta contra sua vida, é fraco e covarde...
- Sr. Almeida!
- É covarde, sim! Porque a verdadeira coragem não sucumbe com um revés; ao
contrário luta, e acaba por vencer. Matando-se, o senhor rouba os seus credores, porque tira-lhes a
última garantia que eles ainda possuem, a vida de um homem.
- E que vale esta vida?
-Vale o trabalho.
- E o sofrimento!
- É verdade; mas não temos direito de sacrificar a um pensamento egoísta aquilo, que não nos
pertence. Se a sua existência está condenada ao sofrimento, deve aceitar essa punição que Deus lhe
impõe, e não revoltar-se contra ela.
Jorge abaixou a cabeça; não sabia o que responder àquela lógica inflexível.
- Escute, disse o velho depois de um momento de reflexão, o que teme o senhor dessa desonra que
vai recair sobre a sua vida? Teme ver-se condenado a sofrer o desprezo do mundo, e sentir o
escárnio e o insulto sem poder erguer a fronte e repeli-lo; teme enfim que a sua existência se torne
um suplício de vergonha, de remorso e de humilhação! não é isto?!
- Sim! balbuciou o moço.
- Pois não é preciso cometer um crime para livrar-se dessa tortura; morra para
o mundo, morra para todos; porém viva para Deus, e para salvar a sua honra e expiar o seu passado.
- Que quer dizer? perguntou o moço admirado.
- Ali está o corpo de um infeliz; é um cadáver sem nome, sem sinais que digam
o que ele foi; deite sobre ele uma carta, desapareça, e daqui a uma hora o senhor terá deixado de
existir.
- E depois?
- Depois, como um desconhecido, como um estranho que entra no mundo
tendo a lição da experiência e a alma provada pela desgraça, procure remir as suas culpas. Um dia
talvez possa reviver e encontrar a felicidade.
Jorge refletiu:
- Tem razão, disse ele.
Pouco depois ouviu-se um tiro; os trabalhadores das obras que iam chegando
encontraram um cadáver mutilado e a carta de Jorge; ao mesmo tempo o moço e o Sr. Almeida
ganhavam pelo lado oposto a Praia de Santa Luzia.
Passava um bote a pouca distância de terra; o velho acenou-lhe que se aproximasse.
O acaso nos favorece, disse ao moço; sai amanhã para os Estados Unidos um
navio que me foi consignado; é melhor embarcar agora, para não excitar desconfianças; hoje
mesmo lhe tirarei um passaporte.
O bote aproximou-se; o embarque nestas paragens é incômodo; mas a situação
não admitia que se atendesse a isto.
Eram nove horas quando o Sr. Almeida, tendo deixado Jorge na barca americana e tendo tomado
um carro na primeira cocheira, chegou à casa de D. Maria.
A boa senhora recebeu-o com um sorriso; estava sentada na sala próxima ao
quarto de sua filha e esperava tranqüilamente que seus filhos acordassem.
O velho, vendo aquela serena felicidade, hesitou; não teve ânimo de enlutar esse
coração de mãe.
Nisto a porta do quarto abriu-se, e Carolina, branca como a cambraia que vestia,
apareceu na porta, tendo na mão a carta de Jorge.
A mãe soltou um grito; a filha não podia falar; e assim passou um momento de
tortura, em que uma dessas dores procurava debalde adivinhar a desgraça, e a outra se esforçava
por achar uma palavra que a revelasse.
No dia seguinte, Jorge partia para os Estados Unidos, e Carolina trocava suas
vestes de noiva por esse vestido preto que nunca mais deixou.
Seria longo descrever a vida desse moço, morto para o mundo e existindo
contudo para sofrer; durante cinco anos alimentou-se de recordações e de uma esperança que lhe
dava forças e coragem para lutar.
O amor de Carolina, talvez mais do que o sentimento da honra, o animava;
trabalhou com uma constância e um ardor infatigáveis, e ganhou para pagar todas as dívidas de seu
pai.
Logo que se achou possuidor de uma soma avultada, Jorge preferiu vir acabar a
sua expiação no seu país, onde ao menos se sentiria perto daqueles que amava.
De fato chegou ao Rio de Janeiro com o nome de Carlos Freeland; dava-se por
estrangeiro; alguns, porém, julgavam que nascera no Brasil e que aí vivera muito tempo, mas não
se recordavam de o ter visto.
A desgraça tinha mudado completamente a sua fisionomia; do moço tinha feito
um homem grave; além disso, a barba crescida ocultava a beleza dos seus traços.
O seu primeiro cuidado foi procurar o Sr. Almeida e pedir-lhe que o auxiliasse no resgate das
letras, que devia ser feito de modo que ninguém o suspeitasse. O que fez o velho negociante, já o
sabe.
Como disse, Jorge ocultava sua vida de todos e do próprio velho; sofria corajosamente a miséria a
que se condenara, mas não queria que ela tivesse uma testemunha.
O Sr. Almeida, porém, surpreendera o segredo.

A viuvinha José de Alencar Onde histórias criam vida. Descubra agora