O interior do edifício correspondia dignamente à sua aparência.
A sala, se assim se pode chamar um espaço fechado entre quatro paredes negras,
estava ocupada por algumas velhas mesas de pinho.
Cerca de oito ou dez pessoas enchiam o pequeno aposento: eram pela maior
parte marujos, soldados ou carroceiros que jantavam.
Alguns tomavam a sua refeição agrupados aos dois e três sobre as mesas; outros
comiam mesmo de pé, ou fumavam e conversavam em um tom que faria corar o próprio Santo
Agostinho antes da confissão.
Uma atmosfera espessa, impregnada de vapores alcoólicos e fumo de cigarro
pesava sobre essas cabeças, e dava àqueles rostos um aspecto sinistro.
A luz que coava pelos vidros embaciados da janela mal esclarecia o aposento, e
apenas servia para mostrar a falta de asseio e de ordem que reinava nesse couto do vício e da
miséria.
No fundo, pela fresta de uma porta mal cerrada, aparecia de vez em quando a
cabeça de uma mulher de 50 anos, que interrogava com os olhos os fregueses, e ouvia o que eles
pediam.
Era a dona, a servente e ao mesmo tempo cozinheira dessa tasca imunda.
A cada pedido, a cabeça, coberta com uma espécie de turbante feito de um lenço
de tabaco, retirava-se, e daí a pouco aparecia um braço descarnado, que estendia ao freguês algum
prato de louça azul cheio de comida, ou alguma garrafa de infusão de campeche com o nome de
vinho.
Foi nesta sala que entrou Carlos.
Mas não entrou só; porque, no momento em que ia transpor a soleira, um homem que havia mais de
meia hora passeava na calçada defronte da tasca adiantou-se e deitou a mão sobre o ombro do
moço.
Carlos voltou-se admirado dessa liberdade; e ainda mais admirado ficou, reconhecendo na pessoa
que o tratava com tanta familiaridade o nosso antigo conhecido, o Sr. Almeida.
O velho negociante não tinha mudado; conservava ainda a força e o vigor que
apesar da idade animava o seu corpo seco e magro; no gesto a mesma agilidade; no olhar o mesmo
brilho; na cabeça encanecida o mesmo porte firme e direito.
- Está espantado de ver-me aqui? disse o Sr. Almeida sorrindo.
- Confesso que não esperava, respondeu o moço, confuso e perturbado.
- O mal pode ocultar-se; o bem se revela sempre; acrescentou o velho em tom
sentencioso.
- Que quer dizer?
- Entremos.
- Para quê?
- O senhor não ia entrar?
Carlos recuou insensivelmente da porta, e, querendo esconder do velho
negociante o seu nobre sacrifício, fez um esforço, e balbuciou uma mentira:
- Passava... por acaso... Vou ao Largo do Moura...
O Sr. Almeida fitou os seus olhos pequenos, mas vivos, no rosto do moço, que não pôde deixar de
corar; e, apertando-lhe a mão com uma expressão significativa, disse-lhe :
- Sei tudo!
- Como? perguntou Carlos admirado ao último ponto.
- É aqui que costuma jantar. E por isso adivinho qual tem sido a sua existência durante estes cinco anos. Impôs-se a si mesmo o castigo da sua antiga prodigalidade; puniu o luxo
de outrora com a miséria de hoje. É nobre, mas é exagerado
- Não, senhor; é justo. O que possuo atualmente, o que adquiro com o meu
trabalho, não me pertence; é um depósito, que Deus me confia, e que deve servir não só para pagar
as dívidas de meu pai, como também a dívida sagrada que contraí para com uma moça inocente.
Gastar esse dinheiro seria roubar, Sr. Almeida.
- Bem; não argumentemos sobre isto; não se discute um generoso sacrifício:
admira-se. Venha jantar comigo.
- Não posso, respondeu o moço.
- Por quê?
- Não aceito um favor que não posso retribuir.
- Quem faz o favor é aquele que aceita e não o que oferece. Demais, eu pobre,
nunca me envergonhei de sentar-me à mesa de seu pai rico, acrescentou o velho com severidade.
- Desculpe!
O velho tomou o braço de Carlos, e dirigiu-se com ele ao Hotel Pharoux, que
naquele tempo era um dos melhores que havia no Rio de Janeiro; ainda não estava transformado em
uma casa de banhos e um ninho de dançarinas.
Poucos instantes depois, estavam os dois companheiros sentados a uma das mesas do salão; e o Sr.
Almeida, com um movimento muito pronunciado de impaciência, instava para que o moço
concordasse na escolha do jantar que ele havia feito à vista da data.
Carlos recusava com excessiva polidez os pratos esquisitos que o velho
lembrava, e a todas as suas instâncias respondia sorrindo:
- Não quero adquirir maus hábitos, Sr. Almeida.
O velho reconheceu que era inútil insistir.
- Então o que quer jantar?
Carlos escolheu dois pratos.
- Somente?
- Somente.
- Não me meto mais a teimar com o senhor, respondeu o velho olhando de
encontro à luz o rubi líquido de um cálice de excelente vinho do Porto.
Serviu-se o jantar.
O Sr. Almeida comeu com a consciência de um homem que paga bem e que não
lastima o dinheiro gasto nos objetos necessários à vida. Satisfez o estômago e deixou apenas esse
pequeno vácuo, tão difícil de encher, porque só admite a flor de um manjar saboroso ou de uma
iguaria delicada.
Então, bebendo o seu último cálice de vinho do Porto, passando na boca as pontas do guardanapo,
cruzou os braços sobre a mesa com ar de quem dispunha a conversar.
- Pode acender o seu charuto, não faça cerimônia.
- Já não fumo, respondeu Carlos simplesmente.
- O senhor já não é o mesmo homem. Não come, não bebe, não fuma; parece um velho da minha
idade.
- Há uma coisa que envelhece mais do que a idade, Sr. Almeida: é a desgraça.
E além disto o senhor tem razão; não sou, nem posso ser o mesmo homem; já morri uma vez,
acrescentou em voz baixa.
- Mas há de ressuscitar.
- É essa a esperança que me alimenta.
- E como vai esse negócio? perguntou o velho com interesse.
- Tem-me custado recolher as letras de meu pai; já paguei 60:000$, e amanhã
devo pagar 5:000$; seis letras que me faltam não sei onde se acham. Se eu pudesse anunciar... Mas,
na minha posição, receio comprometer-me.
- Pensou bem. Porém só restam por pagar essas seis letras?
-Unicamente.
- Quer saber então onde elas estão?
- É o maior favor que me pode fazer.
- Com uma condição.
- Qual?
- Que há de ouvir-me como se fosse seu pai quem lhe falasse, disse o velho,
estendendo a mão.
Por toda a resposta o moço apertou, com efusão e reconhecimento, a mão leal do
honrado negociante.
- Essas seis letras, disse o Sr. Almeida, estão em meu poder.
- Ah!
- Lembra-se do que lhe disse, há cinco anos, na véspera do seu casamento?
- Lembro-me de tudo.
- Era minha intenção salvar a firma de meu melhor amigo... de seu pai. Mas a
sua morte suposta impossibilitou-me. O passivo da casa excedia as minhas forças. Os credores
reuniram-se e resolveram fazer declarar a falência.
- De um homem morto.
- É verdade. Não o pude evitar. O mais que consegui foi abafar este negócio,
comprando a alguns credores mais insofridos as suas dívidas. Eis como essas letras vieram parar à
minha mão.
- Obrigado, Sr. Almeida, disse o moço comovido, ainda lhe devo mais esse sacrifício.
- Está enganado, respondeu o velho querendo dar à sua voz a aspereza habitual; não fiz sacrifício;
fiz um bom negócio; comprei as letras com um rebate de 50%, ganho o dobro.
- Mas quando as comprou não tinha esperança de ser pago.
- Tinha confiança na sua honra e na sua coragem.
- E se eu não voltasse
- Era uma transação malograda; a fortuna do negociante está sujeita a estes
riscos.
- Felizmente, Deus ajudou-me e quis que um dia pudesse agradecer-lhe sem
corar, esse benefício. O que tinha sido da sua parte uma dádiva generosa, tornou-se um empréstimo
que devo pagar-lhe hoje mesmo.
- Não consinto; prometeu-me ouvir como a seu pai; eis o que ele lhe ordena
pela minha voz. - Todas as suas dívidas acham-se pagas; a sua honra está salva; é tempo de voltar
ao mundo.
- Mas as seis letras que estão em sua mão? interrompeu o moço.
- Aqui as tem, disse o Sr. Almeida entregando-lhe um pequeno maço.
- Devo-lhe então...
- Deve o que dei por elas; e me pagará quando lhe for possível.
- Não sei quanto lhe custaram esses títulos; sei que eles representam um valor
emprestado a meu pai. O senhor podia perder; é justo que lucre.
- Bem; faça o que quiser.
- Quanto ao pagamento, posso realizá-lo imediatamente; já o teria feito se há mais tempo soubesse
que esses títulos lhe pertenciam.
- Eu ocultei-os de propósito. Quando chegou dos Estados Unidos e me comunicou o que tinha feito
e o que pretendia fazer, resolvi, para facilitar-lhe o cumprimento de seu dever, deixar que o senhor
pagasse primeiro os estranhos.
- Agora, porém, essa dificuldade desapareceu; vamos à minha casa.
- Para quê?
- Para receber o que lhe devo.
- Não tratemos disso agora.
- Escute, Sr. Almeida; depois de cinco anos de provanças e misérias, não sei o que Deus me reserva. Mas, se ainda há neste mundo felicidade para mim, antes de aceitá-la é
preciso que eu tenha reparado todos os meus erros; é preciso que eu me sinta purificado pela
desgraça. Uma dívida, embora o credor seja um amigo, se tornaria um remorso. Tenho dinheiro
suficiente para pagá-la.
- E que lhe restará?
- Um nome honrado, e a esperança
O Sr. Almeida resignou-se e acompanhou Carlos até à sua casa.
Aí, o moço abriu a carteira, e, tirando os valores que há pouco havia guardado,
entregou ao negociante a quantia de 30:000$ representada pelo algarismo das seis letras.
- Já lhe disse que só me deve 15:000$, disse o velho recusando receber.
- Devo-lhe o valor integral destes títulos; se a firma de meu pai não inspirou confiança aos outros,
para seu filho ela não sofre desconto.
Enquanto o Sr. Almeida, mordendo os beiços, guardava as notas do banco e os
bilhetes do tesouro, Carlos abria uma pequena carteira preta, e, depois de beijar a firma de seu pai
escrita no aceite, fechou com as outras essas últimas letras que acabava de pagar.
- Aqui está a minha fortuna, disse, sorrindo com altivez.
- Tem razão, respondeu o velho; porque aí está o mais nobre exemplo de
honestidade.
- E também o mais belo testemunho de uma verdadeira amizade.
- Jorge!... exclamou o negociante, comovendo-se.
Alguns instantes depois, o Sr. Almeida despediu-se do moço.
- Escuso recomendar-lhe uma coisa, disse Jorge ao negociante.
- O quê?
- A continuação do segredo. Nem uma palavra!... Quando for tempo, eu
mesmo o revelarei. Ainda não sou Jorge.
- Que falta?
- Depois lhe direi.
E separaram-se.