Carta 4: De Ryona a Mauro

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Dia 13 do Terceiro mês de Aghair. Ano 99 pelo calendário de Morat

Rei Mauro,

O tempo e os recursos que nos forneceste foi um grato presente, vindo em um momento de caos e conturbações. Espero que um dia estes donativos recriem os laços entre nossos povos e que, assim como é graças a eles que curamos nossas feridas, sejamos capazes de cicatrizar todas as mágoas que nos afastaram outrora. Ponho-me humildemente agradecida, pelas palavras que não sei pronunciar em teu idioma. Graças a estas poucas – como fizeste questão de pontuar – carroças que agora saem da Floresta Cinzenta, seremos capazes de nos reerguer.

Ainda não sabemos o que originou o fogo, tampouco o número exato de nossos mortos. Contudo, é com imensa tristeza que lhe informo: Grania se encontra entre os que não foram capazes de escapar. Sei que esta não era a notícia que esperavas e também sei que para o consolo dos mortos não existe palavras, sequer existe bálsamo para a dor que nos aperta o peito, porém desejo a ela a proteção da Grande Mãe em sua travessia e a ti e a todos os sobreviventes sabedoria e conforto.

Kajary está devastada. A Cidade dos Visitantes é apenas uma cicatriz negra e profunda no solo. Um terrível lembrete para nós desta tragédia. O odor castiga nosso olfato, parece impregnado em cada árvore, nos sufocando pela neblina. Mas iremos superar isto.

Majestade, perdoe-me dizê-lo de forma tão direta e a inconveniência de tal pedido, porém encontro-me em uma posição delicada e como rainha de meu povo, não posso agir de outra forma. Demorei a ponderar sobre o assunto e pedi aconselhamento àquelas que são minhas sábias. Algumas ainda discordam do que irei lhe pedir, todavia, sondei opiniões do povo e notei que são poucos os que desejam continuar dentro da Floresta Cinzenta.

Não existe uma única família sem ser afetada pelo pesar. Ofereci, principalmente aos que podem permanecer conosco por suas formas singulares – e sabes ao que me refiro – que fiquem. Porém, existem os homens e seus filhos, alguns que já não possuem laços conosco. Nossas culturas se distinguem, nossos hábitos são vistos com maus olhos e eles merecem um lugar onde possam se incluir. Temo que muitos busquem as terras de Gamora, ao norte, sem saber o que ocorre depois das montanhas.

Por favor, rei Mauro, pense a respeito. Gamora não é um lar justo para ninguém. Entenda isto como uma súplica, um pedido informal e livre das coroas em nossas cabeças, feito por aquela que um dia já foi sua amiga e, como costumavas falar, esposa de teu irmão. Tens total liberdade para se negar a cumpri-lo, todavia, estes homens e todos os mestiços sem asas possuem mais chances em teu reino que dentro da Floresta. Acredito que os homens aqui são tão teus irmãos quanto todas as fadas são minhas súditas, irmãs e conselheiras.

A laços de fraternidade não se deve negar abrigo.

Antes que pondere sobre o assunto, ou te reúnas com os sacerdotes e líderes de teu povo, tenho mais algo a informar. Tua filha sobreviveu e passa bem. Agora ela está em minha guarda, a brincar com minhas próprias filhas. Todavia, não posso mantê-la aqui para sempre, mesmo sendo uma criança fascinante e inteligente, é uma menina sem asas. Espero que não me entendas mal, mas já vi o que fazem minhas irmãs com crianças parecidas com a tua.

Desejo profundamente que ela seja bem recebida em teu castelo. És o pai e deves cuidar dela, como Grania fazia antes de se unir a Grande-Mãe outra vez. Uma flor tão bela não deveria ser escondida nos porões, tampouco abandonada em cavernas. De mim, ela receberá uma pequena benção. Estou sendo tola, mas acredito que me apeguei ao seu sorriso doce. Às vezes, ela me lembra uma irmã perdida há muito, em um tempo que precede nossa trégua...

Mas isto não é assunto para esta carta.

Sobre a extensão dos danos do incêndio, necessito lhe falar que o início do fogo se deu em uma de nossas três fontes sagradas. N'amach. Acredito que a tradução do nome para tua língua seja Fonte de Poder, mas estas palavras me parecem inapropriadas e supérfluas. N'amach tem mais que poder, há nela a própria ligação para com a Grande Mãe. Nela, os mestiços de nossos povos podiam beber um cálice, a fim de ganhar a benção de Ban'dir. Todavia, as águas agora estão corrompidas e o solo é tão escuro quanto a noite. Temo que o fim das águas de N'amach ponha fim a nossas relações e traga aos novos mestiços a impotência diante daqueles que outrora provaram dela.

Por este motivo, meu presente a tua filha é um frasco pequeno, que guardava para mim mesma. Pressinto que em outro dia, será por causa destas águas que bebe que ela estará destinada a grandes feitos.

Mandá-la-ei junto a alguns homens que desejam voltar a Morat, apenas necessito de tua confirmação para isto. Não esqueças, Mauro, das palavras que me disseste ao sair de nosso solo, em uma das poucas ocasiões nas quais fomos honradas com tua presença.

Nossos povos só poderão ter forças quando ousarmos retirar as barreiras de nosso caminho.

Siga bem,

Ryona.

Da tua Rosa [DEGUSTAÇÃO]Onde histórias criam vida. Descubra agora