Dezenove.

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Lauren e eu ficamos em casa naquela noite, no meu quarto e de Vero, e ela tocou sua gaita, e ouvimos música. Em alguns momentos, ela acompanhava a música com a gaita, mas, na maior parte do tempo, conversamos. Houve histórias de dias que ela passara tocando por dinheiro, e de tipos que havia conhecido no porto e em outros lugares da cidade. Falei da escola e de como eu ficava sentada em um muro lá, sentindo as histórias e as palavras passarem por mim, e às vezes umas pessoas iam conversar comigo. Amigos antigos e conhecidos.

Contei que ninguém além dela sabia das palavras.

Foi uma sensação boa.

Íntima.

Lauren estava de jeans, mas tirou os sapatos e as meias, e eu me lembro de ter olhado para seus pés descalços, ela sentada de pernas cruzadas na minha cama.

Lembro-me de ter olhado para seus dedos e tornozelos. Eu gostava dos seus tornozelos e é claro que, quando levantei a cabeça, gostei da expressão no rosto dela ao falar e escutar e pensar. Ela riu de coisas. Dos picolés de cerveja, e de histórias que contei sobre mim e Vero e sobre as idas às pistas só para olhar, rindo e apostando de vez em quando, só de farra.

Conversar foi bom.

Parece uma coisa óbvia para se dizer, mas me ajudou a conhecê-la, por seu jeito de falar as coisas e pelos momentos em que ela ficava pensando, e depois me explicava o que era. Acho que, quando alguém lhe conta uma coisa que costuma guardar, você se sente privilegiada, não por saber algo que ninguém mais sabe, mas por se sentir escolhida. Dá a impressão de que aquela pessoa quer que a vida dela se entrelace com a sua. Acho que foi a melhor sensação.

Cheguei perto, muito perto de lhe perguntar sobre sua família, mas não consegui. De algum modo, intuí que esse era um assunto que ela é que teria que começar.

Lauren voltou na tarde seguinte e, já que papai, Vero e eu não tínhamos almoçado peixe com fritas, eu estava no clima para comer esse tipo de coisa. Fomos a uma loja ali perto e voltamos com uma porção enorme. A Sra. Cabello ficou grata por não ter que requentar as sobras, e todos comemos na cozinha, direto do embrulho.

Nós não somos endinheirados, na minha família.

Não somos uma porção de coisas.

Mas notei que, quando estávamos todos comendo o peixe com fritas, e a Vero me xingou por eu ter deixado cair um pedaço de peixe, e o papai deu-lhe um tapa na testa por causa disso, a Lauren ficou observando com um brilhozinho no olhar.

Gostava da nossa casa, deu para perceber.

Ela gosta de conversar com a Dinah e com minha mãe, e agora, até com meu pai, que lhe explicou em detalhes as complexidades da instalação, conserto e reforma de um sistema sanitário. Havia uma rudeza naquilo tudo, mas era real. Tudo, desde os pedaços de peixe que caíam até os xingamentos coletivos e o sal grudado no canto da boca das pessoas.

A certa altura, quando Dinah nos falava de uma garota com quem trabalhava, que tinha o mau hálito mais horroroso do mundo, Lauren olhou para mim. E sorriu.

As coisas eram corretas naquele lugar.

Não perfeitas.

Corretas.

Lembrei-me disso no dia seguinte, no lugar de costume no cais, enquanto Lauren tocava e eu estava sentada de lado, meio longe, escutando e escrevendo umas coisas.

Quando ela acabou, fui até lá e a ajudei a recolher o dinheiro. Ela levantou a cabeça, fechando um olho por causa do sol, e disse:

— Levei você a lugares, Camz. Lugares a que eu queria ir. — Pôs o dinheiro em uma bolsinha de pano. — Por que não me leva a um lugar aonde você queira ir?

A garota que eu quero (Camren | Intersexual)Onde histórias criam vida. Descubra agora