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Existem algumas situações na vida que parecem uma cena de uma peça de teatro escrita por algum roteirista sem o menor bom senso. Uma cena forçada, onde um dos personagens parece totalmente deslocado, como se tivesse sido sorteado em uma pilha escrita "personagem" e outra pilha escrita "local".

Estevão está vendo uma destas situações neste momento. E não resiste em perguntar:

- Cara, você realmente vai comprar?

A pergunta é dirigida ao seu amigo Lucio, que faz o papel do personagem deslocado. Eles estão em uma loja de fantasias brega, empoeirada, e Lucio é a perfeita descrição de um executivo da alta sociedade. Seu terno de cinco mil reais não combina com a fantasia que ele carrega nas mãos.

- Acho que vou sim. Você me convenceu!

- Aleluia! Achei que você seria quadrado a vida inteira!

Estevão, por outro lado, está totalmente à vontade. Tem um jeito muito mais informal, e a mente muito mais aberta. Ele está acostumado a ir à sex shops e à lojas de fantasias, a procura de coisas diferentes para se usar na cama com suas parceiras. Lucio sempre o considerou estranho e pervertido por conta disso, mas após dois anos de casamento sentia que a rotina estava chegando e acabou cedendo à pressão de seu amigo.

- Você acha que a Angélica vai gostar disso? – pergunta Lucio.

- Meu amigo, confie. Mulher adora estas coisas!

Estevão segue o código de honra do amigo homem. E segundo o código, "mulher de amigo é como irmã". Mas não pode deixar de imaginar a bela esposa de Lucio vestindo aquele macacão de couro que o amigo escolhera para levar. Com certeza, uma peça rara em uma mulher mais rara ainda.

- Parece as coisas sadomasoquistas que você gosta!

- Sim, com certeza. Eu sou o Sadoking, não se esqueça!

- Eu tento esquecer, mas você faz questão de me lembrar!

- Ainda vai chegar o dia que você vai me pedir dicas de como dar meu Tapa Supremo, que deixa as meninas loucas de tesão!

- Vai sonhando...

Os dois chegam ao caixa. Lucio coloca a fantasia de couro no balcão, mas fica de cabeça abaixada, como se tivesse fazendo uma grande travessura que o envergonhasse e procura a carteira dentro da calça, mas Estevão o interrompe:

- Não meu amigo, deixa que eu pago. É presente.

- Imagina...

- Faço questão!

Estevão sabe que aquilo não é necessário. Lucio é de uma família tradicional, possuem mais da metade dos imóveis locados em uma das avenidas mais importantes. Dinheiro ali não falta, e nunca vai faltar, nem para os descendentes. Mas ele faz questão, mesmo assim. Sente ter ganhado uma batalha com aquilo, assim como Angélica deve ter se sentido quando casou com Lucio, mesmo contra toda a família dele.

- Na verdade nenhum de vocês vai pagar.

Os dois amigos olham para o velho, do outro lado do balcão.

- Como é? – pergunta Estevão.

- Você ouviu. Esta roupa não vai sair daqui. Nem devia estar exposta. Dê ela aqui e escolha outra coisa.

Os dois ficam se olhando, sem entender. Para Lucio, aquela foi a fagulha que faltava para ele largar tudo e sair, arrependido de ter entrado. Pedindo desculpas, ele deixa a roupa no balcão e sai da loja.

Estevão vê a cena e vai atrás do amigo. Chegando à porta, olha para trás novamente e vê o velho sair do balcão. Em seu lugar chega um rapaz mais novo, e ele resolve arriscar a sorte.

- Oi, viu, será que não dá mesmo para levar esta roupa?

O homem no balcão olha para ela e para Estevão.

- Meu pai é meio que obcecado por ela. Diz que é coisa antiga, tem as superstições dele. Não quer mesmo levar outra coisa?

- Cara, não tem nada parecido com isso. Meu amigo não quer estas fantasias de super heroínas ou de enfermeiras. Ele se encantou por esta!

O homem olha para o fundo da loja, e novamente para Estevão.

- Tudo bem, a crise tá brava mesmo e não quero perder venda. Mas não sairá por menos de quinhentos reais!

Estevão pensa no cheque especial que todo mês ele acha que estará livre, mas que insiste em sempre usar, e pensa na família esnobe e quadrada de seu amigo. Pensa na cara dos pais dele sabendo que a "putinha interesseira" da esposa dele está usando um macacão de couro dado pelo "amigo maconheiro e vagabundo".

- Tudo bem, passa no débito, por favor!

- Embrulha para presente?

- Com certeza!

MarioneteOnde histórias criam vida. Descubra agora