Capítulo 1 - Maria Cecília, a garota que não sente.Março, 2017
Não sabia que tinha tantos efeitos colaterais após uma traição, até acontecer comigo. O primeiro é óbvio: não conseguir passar por debaixo de nenhuma porta ou coisa do tipo sem se abaixar antes. Não é pela minha altura exorbitante, mas por medo dos gigantescos chifres na minha cabeça quebrarem no processo. Me deixaria livre deles? Temporariamente, até porque eles nunca vão me abandonar, crescem de novo, me deixando com uma dor de cabeça horrível.
A segunda também é óbvia, que é a constante sensação de nunca ser boa o suficiente para nada e nem ninguém. E a terceira é — no meu caso — odiar ir para a escola, coisa que eu já não apreciava antes, mas depois de ganhar o título de corna 2016 oficial, eu passei a odiar pisar no Santa Amélia. Quase como um trauma pós-cornice.
É uma tortura diária, porque além de ter que aturar piadinhas e risadinhas desde o ano passado, tenho que lidar com meu ex-namorado-cuzão e minha ex-amiga desfilando juntos pelos corredores, como a droga de um casal perfeito.
Eu odeio meu clichê! Por isso, toda manhã é o mesmo ritual: me atraso de propósito. Adio o máximo minha chegada lá. Demoro no banho — desculpa planeta terra, mas é por uma boa causa —, ouvindo minhas playlist gigantes com as mesmas trinta músicas, nas mesmas ordens. Demoro no café da manhã, na escovação dos dentes e na escolha das meias. Enfim, com sorte consigo fazer hora o suficiente para só chegar na segunda aula, com olhares de reprovação do meu pai que é obrigado a me deixar no colégio e advertências nada silenciosas do inspetor, mas vale a pena. Até o intervalo.
Mas normalmente, só dura até minha mãe surtar e me negar carona, me deixando ir sozinha de ônibus. Tem acontecido com frequência, como é o caso desta manhã.
O vento frio passa entre o suéter fino do traje humilhação. Esqueci que nessa época do ano esta cidade vira o próprio Alaska, pelo menos nesse horário da manhã. Fiz tanta hora lendo os trending topics do twitter como se fosse um jornal matinal, que nem consegui terminar de me arrumar de forma adequada — que vai evitar de levar um dos cartões coloridos do inspetor Clóvis. Termino de abotoar os últimos botões da blusa branca com o brasão do colégio no peito esquerdo, e coloco a barra dentro da saia godê azul marinho, item obrigatório do uniforme feminino, assim como as meias ¾. Odeio isso também.
Pego o rímel no bolso e termino o olho que faltou, fitando minha imagem acabada na câmera frontal do celular, observo a cara da consequência de dormir tarde após maratonar série de super herói. Preciso de um pouco de dignidade, mas acho que não vai ser um corretivo, acompanhado de rímel caro com um pouco de manteiga de cacau, que vai me dar.
Suspiro. Corna e acabada. Ótimo título para música indie.
Se tem algo que atrasa mais do que eu, é o ônibus Colinas da Serra sentido Centro, mas não o suficiente para me fazer perder a primeira aula, infelizmente. Química. Ninguém merece isso às sete e quinze de uma segunda-feira. Plano do governo de exterminar os adolescentes, certeza.
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Depois Que O Café Esfriar
Novela JuvenilAntigo: "A Teoria do Clichê Adolescente" Maria Cecília tem uma teoria: ela acredita que todos os adolescentes estão destinados a ter uma cena clichê. Ela até estava feliz com o seu: tinha como namorado o capitão do time de vôlei, sua melhor amiga e...