Capítulo 4 - Salva pelo Batman
É engraçado como funcionam os estágios do luto. Às vezes os processos apresentam-se de forma lenta. Às vezes como um furacão. Estou lidando com eles há um tempo e nunca sei muito bem como agir em relação a eles.
Tenho a sensação de que passei por todos eles. Negação? Check. Depressão? Check também. Mas tem momentos que acho estou estagnada na segunda fase: a da raiva. Eu sinto raiva nas vinte quatro horas do dia. Sou quase movida por ela. E é ela que não me deixou dormir essa noite; é ela que está me consumindo essa manhã.
Uma coisa sobre mim é que penso demais. E as vezes entro em surtos solitários. Minha cabeça ficou martelando sem parar, mil coisas sobre o vídeo em que eu descobri a traição. Nas pessoas que ele chegou, nas piadas que não ouvi. Será que chegou até alguém da minha família e não me contaram por pena? Será que meus pais viram e não falaram nada até agora porque não se importam com dramas adolescentes? E assim, fiquei relembrando todas as vezes que senti compadecimento nas vozes e nos toques gentis no ombro de certos professores.
É uma coisa tão idiota, mas que fez meu estômago revirar e me tirou metade do sono. Só fui conseguir pregar os olhos, às três da manhã. Sai de casa tão atrasada que nem Samuel ou meu pai estava mais lá, e minha mãe me olhou de forma tão julgadora, que a única coisa que eu fiz foi pegar um pão de milho, meu habitual copo térmico e sair sem nem dar tchau, totalmente sem coragem de pedir pra me deixar no Colégio.
Estava atrasada pra caralho, mas por sorte meu ônibus estava mais, porque quando cheguei no ponto o Batman ainda estava no mesmo lugar de sempre, com um moletom amarelo enorme e com o capuz cobrindo os cabelos longos.
— Cheguei a tempo — murmuro para mim mesma, um pouco sem fôlego pela corrida até aqui. — Bom dia
Ele tira os olhos da tela do celular e o guarda em seguida no bolso da calça do uniforme azul marinho, com listras laranjas nas laterais. A sigla estampada indica que ele estuda no Santiago, a escola particular que fica há algumas ruas depois da minha e tem o melhor cursinho pré-vestibular da cidade. Se não fosse a tradição esquisita da minha família em matricular todos os membros no CSA, era lá que eu estudaria. E talvez, meu clichê fosse outro. Com outro alguém.
— Bom dia! Também vim correndo achando que tinha perdido — solta uma risada curta e o vento frio me faz arrepiar.
— Hoje não. — me repreendo mentalmente logo em seguida, que coisa idiota de ser dita. Desvio minha atenção para o ônibus que aponta na esquina.
Odeio essa sensação de estar fora de ordem, como uma garotinha perto da sua primeira paixão, que estar em sua presença me causa. Obviamente, é só uma sensação causada porque ele é bonito. Isso eu não posso negar. Odeio minha mente por ter um foco tão grande nele.
Faz pouco mais de um ano que ele começou a pegar essa mesma condução e ficamos nesse ritual de esperarmos o ônibus lado a lado. Acho que foi na mesma época em que comecei a pegar também por conta dos meus atrasos propositais. Nas primeiras manhãs, lembro de um homem mais velho de barba grisalha, que pela semelhança entre eles, julgo ser seu pai, o acompanhava.
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Depois Que O Café Esfriar
ספרות נוערAntigo: "A Teoria do Clichê Adolescente" Maria Cecília tem uma teoria: ela acredita que todos os adolescentes estão destinados a ter uma cena clichê. Ela até estava feliz com o seu: tinha como namorado o capitão do time de vôlei, sua melhor amiga e...