07:40
Bruno está sem camisa e correndo pelo apartamento procurando pelo outro pé do seu sapato. Há outros quatro pares embaixo da cama dele, mas ele teima em desperdiçar seu tempo procurando algo que, com certeza, ele não vai encontrar em até vinte minutos. Nossas aulas começam às oito. Mesmo horário, mas alas diferentes.
Enquanto ele procura por seu sapato inúmeras vezes nos mesmos lugares, eu me sento na cadeira perto da bancada da cozinha e bebo meu café com leite. É uma cozinha pequena. Só há a pia, uma dispensa e a geladeira. Segundo Bruno, os alunos são proibidos de cozinhar desde que houve um incêndio há oito anos. Um prédio inteiro foi engolido em chamas e muitos tiveram ferimentos graves, mas nenhum morto. No final das contas, o prédio foi restaurado e fogões em apartamentos de alunos foram proibidos. A história teve o seu final feliz na medida do possível.
Bruno ainda procura por seu sapato. Ele parece obcecado.
Olho para o relógio no alto da parede enquanto falo:
- Bruno, faltam quinze minutos para o sino tocar e as aulas começarem. - Dou um gole na caneca cheia de café. - Você precisa tomar café, cara. - Abro a geladeira, pego um pacote de biscoitos recheados e jogo em cima da cama dele. - Come! - digo apontando para os biscoitos.
Sei que eu e Bruno nos conhecemos literalmente ontem e não temos intimidade, mas à partir do momento em que moramos juntos, eu devo me preocupar com o bem estar dele. Posso estar sendo leal; altruísta; ou apenas mais um cara desesperado para manter seus amigos custe o que custar.
- Estranho... - Bruno põe as mãos na cintura e olha ao redor. - Eu podia jurar que tava por aqui.
Continuo bebendo meu café e checando minhas redes sociais antes de sair para aula. Hoje é o meu primeiro dia de aula e eu tento me manter o mais calmo possível. O café não ajuda muito, mas fico desperto. Acordar às seis e vinte da manhã depois de passar um dia inteiro confinado em um quarto branco e ter que arrumar as malas duas vezes não é fácil para ninguém. Ainda estou um pouco cansado, eu confesso. Mas cansado de quê?
Bruno desiste de procurar seu "sapatinho de cristal", senta em sua cama e calça dois sapatos em vez de um dessa vez. Um par de sapatos sociais é uma escolha um tanto incomum para quem está vestindo calças de ginástica e camiseta carmesim. Se ele estivesse vestindo calças jeans, não faria tão mal assim para os meus olhos. O que vejo me causa nojo. Ele deveria ser preso porque isso é quase um crime.
- Bruno. - chamo-o.
Ainda calçando os sapatos, ele pergunta:
- O que foi?
- Cara, eu não acredito que você vai mesmo fazer isso. - levanto e deixo minha caneca em cima da pia. - Sapatos sociais? Com calças de ginástica? Você ficou maluco?
Ele dá de ombros e abre o pacote de biscoitos que lhe dei mais cedo. Enquanto ele termina de comer, eu vou até o banheiro para escovar os meus dentes
- Você sabe onde fica a sua ala? - Bruno pergunta enquanto mastiga os biscoitos. Isso me lembra o meu irmão.
- Não, mas você deve saber. - Pode ser um pouco difícil de entender o que eu falo por causa da escova de dentes na boca. - Pode me levar até lá?
Ele ri enquanto mastiga. Não responde e simplesmente dá as costas. Cuspo a pasta de dentes na pia, lavo minha boca e sorrio para o espelho para verificar a clareza dos meus dentes. Eu escovo os meus dentes com bastante frequência e pontualidade para compensar todos esses anos em que eu não fui ao dentista. Eu tenho obturações em meus dentes molares inferiores de ambos os lados. O que deveria ser bom, já que significa que eu vou ao dentista. Mas quando elas ficam pretas de tão desgastadas, apenas significa que eu já fui ao dentista. Há muito tempo. Muito tempo mesmo. Faço questão de não abrir bastante a boca ou sorrir por muito tempo. Infelizmente, eu gosto de falar.
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Cerberus - Parte I
Mystery / ThrillerO jovem e talentoso Hammel realiza o seu sonho de entrar para o melhor e mais disputado programa de jovens talentos do país. Mas seu pesadelo começa quando em seu terceiro dia, um dos alunos é assassinado. Junto de outros quatro alunos que estão env...