Capítulo XVIII

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Por esse tempo, o amigo de Bertoleza, notando que o velho Libório, depois de escapar de morrer na confusão do incêndio, fugia agoniado para o seu esconderijo, seguiu-o com disfarce e observou que o miserável, mal deu luz à candeia, começou a tirar ofegante alguma coisa do seu colchão imundo.

Eram garrafas. Tirou a primeira, a segunda, meia dúzia delas. Depois puxou às pressas a coberta do catre e fez uma trouxa. Ia de novo ganhar a saída, mas soltou um gemido surdo e caiu no chão sem força, arrevessando uma golfada de sangue e cingindo contra o peito o misterioso embrulho.

João Romão apareceu, e ele, assim que o viu, redobrou de aflição e torceu-se todo sobre as garrafas, defendendo-as com o corpo inteiro, a olhar aterrado e de esguelha para o seu interventor, como se dera cara a cara com um bandido. E, a cada passo que o vendeiro adiantava, o tremor e o sobressalto do velho recresciam, tirando-lhe da garganta grunhidos roucos de animal batido e assustado. Duas vezes tentou erguer-se; duas vezes rolou por terra moribundo. João Romão objurgou-lhe que qualquer demora ali seria morte certa: o incêndio avançava. Quis ajudá-lo a carregar o fardo. Libório, por única resposta, arregaçou os beiços, mostrando as gengivas sem dentes e tentando morder a mão que o vendeiro estendia já sobre as garrafas.

Mas, lá de cima, a ponta de uma língua; de fogo varou o teto e iluminou de vermelho a miserável pocilga. Libório tentou ainda um esforço supremo, e nada pôde, começando a tremer da cabeça aos pés, a tremer, a tremer, grudando-se cada vez mais à sua trouxa, e já estrebuchava, quando o vendeiro lha arrancou das garras com violência. Também era tempo, porque, depois de insinuar a língua; o fogo mostrou a boca e escancarou afinal a goela devoradora.

O tratante fugiu de carreira, abraçado à sua presa, enquanto o velho, sem conseguir pôr-se de pé, rastreava na pista dele, dificultosamente, estrangulado de desespero senil, já sem fala, rosnando uns vagidos de morte, os olhos turvos, todo ele roxo, os dedos enriçados como as unhas de abutre ferido.

João Romão atravessou o pátio de carreira e meteu-se na sua toca para esconder o furto. Ao primeiro exame, de relance, reconheceu logo que era dinheiro em papel o que havia nas garrafas. Enterrou a trouxa na prateleira de um armário velho cheio de frascos e voltou lá fora para acompanhar o serviço dos bombeiros.

À meia-noite estava já completamente extinto o fogo e quatro sentinelas rondavam a ruína das trinta e tantas casinhas que arderam. O vendeiro só pôde voltar à trouxa das garrafas às cinco horas da manhã, quando Bertoleza, que fizera prodígios contra o incêndio, passava pelo sono, encostada na cama, com a saia ainda encharcada de água, o corpo cheio de pequenas queimaduras. Verificou que as garrafas eram oito e estavam cheias até à boca de notas de todos os valores, que ai foram metidas, uma a uma, depois de cuidadosamente enroladas e dobradas à moda de bilhetes de rifa. Receoso, porém, de que a crioula não estivesse bem adormecida e desse pela coisa, João Romão resolveu adiar para mais tarde a contagem do dinheiro e guardou o tesouro noutro lugar mais seguro.

No dia seguinte a polícia averiguou os destroços do incêndio e mandou proceder logo ao desentulho, para retirar os cadáveres que houvesse.

Rita desaparecera da estalagem durante a confusão da noite; Piedade caíra de cama, com um febrão de quarenta graus; a Machona tinha uma orelha rachada e um pé torcido; a das Dores a cabeça partida; o Bruno levara uma navalhada na coxa; dois trabalhadores da pedreira estavam gravemente feridos; um italiano perdera dois dentes da frente, e uma filhinha da Augusta Carne-Mole morrera esmagada pelo povo. E todos, todos se queixavam de danos recebidos e revoltaram-se contra os rigores da sorte. O dia passou-se inteiro na computação dos prejuízos e a dar-se balanço no que se salvara do incêndio. Sentia-se um fartum aborrecido de estorrilho e cinza molhada. Um duro silêncio de desconsolo embrutecia aquela pobre gente. Vultos sombrios, de mãos cruzadas atrás, permaneciam horas esquecidas, a olhar imóveis os esqueletos carbonizados e ainda úmidos das casinhas queimadas. Os cadáveres da Bruxa e do Libório foram carregados para o meio do pátio, disformes, horrorosos, e jaziam entre duas velas acesas, ao relento, à espera do carro da Misericórdia. Entrava gente da rua para os ver; descobriam-se defronte deles, e alguns curiosos lançavam piedosamente uma moeda de cobre no prato que, aos pés dos dois defuntos, recebia a esmola para a mortalha. Em casa de Augusta, sobre uma mesa coberta por uma cerimoniosa toalha de rendas, estava o cadaverzinho da filha morta, todo enfeitado de flores, com um Cristo de latão à cabeceira e dois círios que ardiam tristemente. Alexandre, assentado a um canto da sala, com o rosto escondido nas mãos, chorava, aguardando o pêsame das visitas; fardara-se, só para isso, com o seu melhor uniforme, coitado!

O Cortiço (1890)Onde histórias criam vida. Descubra agora