Período sereno da minha vida moral, capitulo a escrever sobre uma banqueta de altar, ou com o alfabeto azul que delineia o fumo do incenso no ar tranqüilo, inolvidáveis tréguas de íntimo sossego em toda a minha juventude, eis em que se tornou a minha amarga descida ao fundo descrédito escolar.
A astronomia, como os céus do salmo, levou-me à contemplação. O mal na terra, descrito pelo Sanches com uma perícia de conhecedor e praticante, tomou vulto no seio das minhas cogitações. A incredulidade primeira acabou em meu espírito, reconhecendo o descalabro deste val de lágrimas em que vivemos. Ao tempo que devia consagrar à minha reabilitação nos estudos, pus-me a estudar, como Inácio de Loiola, talvez na mesma idade, a reabilitação do mundo.
Encarnei o pecado na figura de Sanches e carreguei. Nutria talvez no intimo o ambicioso interesse de um dia reformar os homens com o meu exemplo pontifical de virtudes no sólio de Roma; mas a verdade é que me dediquei conscienciosamente ao santo empenho de merecer essa exaltação, preparando-me com tempo. Perdido o ideal cenográfico de trabalho e fraternidade, que eu quisera que fosse a escola, tinha que soltar para outras bandas os pombos da imaginação. Viveiro seguro era o céu. Ficava-me a vendagem da eterna felicidade, que se não contava.
Acresce que predispunha ao enlevo a tristeza opressa de discípulo mau em que eu jazia. E como aos pequenos esforços que tentava para me reerguer ninguém dava atenção, deixei-me ficar insensível, resignado, como em desmaio sob um desmoronamento. Tinha a consciência em paz, a consciência que é o espetáculo de Deus. Servia-me a crença como um colchão brando de malandrice consoladora. Note-se de passagem que apesar dos anseios de bemaventurança, eu ia mal no catecismo como no resto.
A mais terrível das instituições do Ateneu não era a famosa justiça do arbítrio, não era ainda a cafua, asilo das trevas e do soluço, sanção das culpas enormes. Era o Livro das notas.
Todas as manhãs, infalivelmente, perante o colégio em peso, congregado para o primeiro almoço, às oito horas, o diretor aparecia a uma porta, com a solenidade tarda das aparições, e abria o memorial das partes.
Um livro de lembranças comprido e grosso, capa de couro, rótulo vermelho na capa, ângulos do mesmo sangue. Na véspera cada professor, na ordem do horário, deixava ali a observação relativa à diligência dos seus discípulos. Era o nosso jornalismo. Do livro aberto, como as sombras das caixas encantadas dos contos de maravilha, nascia, surgia, avultava, impunha-se a opinião do Ateneu. Rainha caprichosa e incerta, tiranizava essa opinião sem corretivo como os tribunais supremos. O temível noticiário, redigido ao saber da justiça suspeita de professores, muita vez despedidos por violentos, ignorantes, odiosos, imorais, erigia-se em censura irremissível de reputações. O julgador podia ser posto fora por uma evidenciação concludente dos seus defeitos; a difamação estampada era irrevogavél.
E pior é que lavrava o contágio da convicção e surpreendia-se cada um consecutivamente de não haver reparado que era mesmo tão ordinário tal discípulo, tal colega, reforçando-se passivamente o conceito, até consumar-se a obra de vilipêndio quando, por último, o condenado, sem mais uma sugestão de revolta, achava aquilo justo e baixava a cabeça. A opinião é um adversário infernal que conta com a cumplicidade, enfim, da própria vitima.
Com exceção dos privilegiados, os vigilantes, os amigos do peito, os que dormiam à sombra de uma reputação habilmente arranjada por um justo conchavo de trabalho e cativante doçura, havia para todos uma expectativa de terror antes da leitura das notas. O livro era um mistério.
À medida que se desenrolava a gazetilha, as ânsias iam serenando. Os vitimados fugiam, acabrunhados de vergonha, oprimidos sob o castigo incalculável de trezentas carinhas de ironia superior ou compaixão de ultraje. Passavam junto de Aristarco ao sair para a tarefa penal de escrita. O diretor, arrepiando uma das cóleras olímpicas que de um momento para outro sabia fabricar, descarregava com o livro às costas do condenado, agravante de injúria e escárnio à pena de difamação. O desgraçado sumia-se no corredor, cambaleando.