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Bem diferente esta exaltação deliciosa do abatimento espavorido da véspera, da manhã mesmo, na secretaria da Instrução Pública. A expectativa mortal das chamadas; uma insignificância: o terror acadêmico! que nos sobressalta, que nos deprime como o que há de mais grave. E por ocasião das provas de francês já não era estreante.

A estréia do primeiro exame foi de fazer febre. Três dias antes pulavam-me as palpitações; o apetite desapareceu; o sono depois do apetite; na manhã do ato, as noções mais elementares da matéria com o apetite e com o sono. Memoria in albis.

O professor Mânlio animava; a animação, lembrando o perigo, assustava mais. Esmagava-me por antecipação o peso enorme da bastilha da Rua dos Ourives, como os tribunais ferozes, sem apelo; a terrível campainha penetrante da abertura da solenidade, os reposteiros plúmbeos de espesso verde, sopesando as armas imperiais, as formidáveis paredes de alvenaria secular. Que barbaridade aquela conspiração toda contra mim, contra um, de todos aqueles perfis rebarbativos, contínuos, o Matoso, o Neves Leão, as comissões, qual mais poderosa e carrancuda; o Conselho da Instrução no fundo, coisa desconhecida, mitológica, entrevista como as pinturas religiosas das abóbadas sombrias, onde as vozes da nave engrossam de ressonância, emprestando a força moral à justiça das comissões, com o prestigio da elevação e do inacessível; mais alto que tudo, o Ministro do império, o Executivo, o Estado, a Ordem Social, aparato enorme contra uma criança.

Entrava-se pela Rua da Assembléia, para o saguão ladrilhado.

Ali estive não sei que tempo, como um condenado em oratório. Em redor de mim, morriam de palidez outros infelizes, esperando a chamada. Um, o mais velho de todos, cadavérico, ar de Cristo, tinha a barba rente, pretíssima, como um queixo de ébano adaptado a uma cara de marfim velho.

De repente abre-se uma porta. De dentro, do escuro, saia uma voz, uma lista de nomes: um, outro, outro... ainda não era o meu... Afinal! Não houve nem tempo para um desmaio. Empurraram-me; a porta fechou-se; sem consciência dos passos, achei-me numa sala grande, silente, sombria, de teto baixo, de vigas pintadas, que fazia dobrar-se a cabeça instintivamente. Uma parede vidraçada em toda a altura, de vidros opacos de fumaça, cor de pergaminho, coava para o interior um crepúsculo fatigado, amarelento, que pregava máscaras de icterícia às fisionomias.

Entre as vidraças e os lugares que eram destinados aos examinandos, ficava a mesa examinadora: à direita um velho calvo, baixinho, de alouradas cãs, rodeando a calva em franja de dragonas, barba da cor dos cabelos, reclinava-se ao espaldar da poltrona e lia um pequeno volume com o esforço dos míopes, esfregando as páginas ao rosto. A esquerda, um homem de trinta anos, barba rareada por toda a face, pálpebras inclusive, óculos escuros, cabelo seco, caracolando. A claridade, batendo pelas costas, denegria-lhe confusamente as feições. O terceiro, presidente da comissão, não se via bem, encoberto pela urna verde de frisos amarelos.

Distribuiu-se o papel rubricado. Um dos examinadores levantou-se, apanhou com um movimento circular um punhado de pontos e lançou-os à urna. A urna de folha cantava irônica sob o cair dos números, sonoramente.

Tirou-se o ponto; momento de angústia ainda .

Depois: estrofe dos Lusíadas! Estávamos livres da expectativa. Não me preocupou mais a dificuldade do ponto.

Depois do ditado, como em relaxamento de cansaço do espírito, esqueci o inventário natural dos conhecimentos que a prova reclamava. Pus-me a pensar nas primeiras leituras de Camões, no Sanches, nos banhos da natação, na maneira de rir de Ângela, no criado assassinado, no processo do assassino, que fora julgado havia pouco... Três pancadinhas que senti no calcanhar, chamaram-me das distrações.

Voltei-me: era o meu vizinho da mesa de trás, o queixo de ébano que pedia socorro. "Valha-me que estou perdido, não atino com a ordem direta!"

O ruído desta frase balbuciada, sibilou bem forte para atrair a atenção da mesa. Atirei-lhe a oração principal, mas tive medo de acudir inteiramente. Além disso, precisava cuidar do próprio interesse. Deixei o pobre Cristo de marfim entregue ao desespero de uma lauda deserta. De vez em quando, o infeliz espetava-me as costas com a caneta.

O Ateneu (1888)Onde histórias criam vida. Descubra agora