Pequim - Li Wei

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Quando a policial responsável pelo Departamento de Polícia de Donghuamen, chegou ao Templo Lama no centro de Pequim, logo pode notar o clima fúnebre vindo da única pessoa sentada na parte de trás de uma ambulância. Um rapaz de aparência jovem, que não devia ter mais do que 25 anos, segurava um envelope vermelho entre suas mãos suadas.

Enquanto se aproximava, notou que o jovem tirou uma das notas visivelmente novas de dinheiro do envelope, mantendo dentro dele 50 yauns*, presente comum em funerais. Ele chorava em silêncio, contendo os soluços enquanto as lágrimas não paravam de correr sobre as bochechas e cair no envelope.

A cidade comemorava o Ano Novo Chinês, na segunda semana de Fevereiro. Lanternas decoravam todos os lugares, mercados estavam lotados com comidas e presentes à venda, muita música e festa, enquanto a cor vermelha preenchia as ruas.

- Senhor Li, sou a Oficial Wang Min. Estou aqui para ajudá-lo no seu relato sobre os acontecimentos desta tarde. O senhor se importa se eu gravar nossa conversa?

Ele a respondeu com um gesto negativo com a cabeça, bem de leve, sem tirar os olhos fixos do envelope, nem mesmo quando ela ligou um gravador antigo e a fita começou a rodar.

- Oficial Wang, reportando os acontecimentos do Templo Lama, Pequim, junto de uma das testemunhas do evento, que encontra-se comigo no momento, senhor Li Wei. Começando pelo...

- Eu tive que aceitar o envelope da minha esposa, sabe? - ele a interrompeu. - Ou senão má sorte cairia sobre nós pelo resto do ano, mas... que sorte é essa, afinal?

- Senhor Li, acalme-se, por favor. As medidas de segurança foram tomadas, o Templo está cercado e nossos policiais preparados para possíveis eventualidades. Estamos seguros aqui, preciso que o senhor descreva o que viu, por favor.

- Ninguém está a salvo, em lugar nenhum! - ele gritou, finalmente olhando ao redor. - E-eu... - gaguejava, mais calmo. - Estava com minha esposa... logo ali... - o choro começou a sair do controle, apontando o local. - Acendíamos um incenso enquanto pedíamos por boa fortuna e saúde, quando... quando percebi o dragão!

- O fantoche de dragão do festival?

- Sim, esse mesmo! Segundos antes estavam dançando, ao som dos tambores, nada diferente dos anos anteriores. Os melhores dançarinos que eu já vi, até faziam o dragão cuspir fogo! - riu, sem vontade. - Várias pessoas seguiam o dragão enquanto preparavam o show de fogos de artifício. Eles adoram os fogos... Todas aquelas pessoas... - perdeu-se em suas lembranças.

- O que aconteceu em seguida? - a policial tocou o braço do rapaz, tentando fazê-lo concentrar-se.

- O dragão começou a ficar descontrolado. Primeiro pensamos que fazia parte da dança, mas nada fazia sentido! Os dançarinos responsáveis pela cauda saíram correndo, enquanto o resto do dragão retorcia-se. Depois que a parte da frente do fantoche caiu, pudemos ver o motivo. Eram... monstros horrorosos! A pele estava derretendo, eles eram verdes e asquerosos! Pingavam por todos os lados... Um grupo de pessoas ficou parado. Pensamos que podia ser algum tipo de encenação, muito estranha, pois eles não se mexiam e gritavam "Me ajude. Me ajude." de um jeito mecânico, como atores ruins sem expressão...

A oficial lembrou de ter duvidado das declarações das pessoas que chegaram ao distrito mais cedo, alegando que monstros estavam devorando as pessoas no Templo. Ainda duvidava quando recebeu uma ligação urgente do chefe da segurança, responsável pelo evento, até ver pessoalmente toda a pele e músculo derretido pelo chão.

80 mil pessoas eram aguardadas para as celebrações deste ano, e sabe-se lá quantas estavam soltas pela cidade, transformando outros milhares e deixando este rastro mal-cheiroso pelo caminho.

- Depois de transformar o grupo naquelas coisas verdes, eles vieram em nossa direção. Eu tentei arrastar minha esposa para longe dali, com toda a força que ainda me sobrava, mesmo com as pernas bambas de medo, mas... Ela congelou! Ficou paralisada! Não conseguia fazê-la mexer um músculo sequer, e então ela começou a gritar, tão mecanicamente quanto o grupo... "Me ajude. Me ajude." - o choro tomou conta do rapaz. Precisou de alguns minutos até que conseguisse terminar. - Eles a transformaram! - soluçava. - Agora Mei, a minha Mei, é um daqueles monstros!

- Senhor Li, quando o encontraram, o senhor estava cercado pelos resíduos corporais deixados por estas coisas, mas eles não o atacaram? Atacaram apenas a sua esposa, que gritava por socorro?

- Eu queria que tivessem me atacado! Eu queria! Pelo menos não seria obrigado a ver minha mulher derreter e virar um monstro verde sem sentimento, que devora pessoas inocentes! Pelo menos eu estaria junto dela! Meu Deus, o que está acontecendo? Me diga! Me diga como ela pode morrer em paz e ter um enterro digno! - chorava inconsolável.

A oficial Wang desligou o gravador, curvou-se em respeito à ele, prestando suas condolências pela perda.

- Eu sinto muito, senhor Li, por tudo o que lhe aconteceu. Muitas vítimas sofreram o mesmo destino de sua esposa, e com certeza o seu pesar não será o único a ser ouvido. Nos acompanhe até a delegacia, preciso que fique lá por um tempo; lhe daremos o que for necessário para que se sinta confortável.

- Me leve para qualquer lugar, menos para minha casa... menos para minha casa...

****

Chegando à sua sala, de volta ao Departamento de Polícia a 20 minutos dali, a oficial liga para um número internacional, fechando as persianas para tentar manter o maior sigilo possível.

- Coronel, aqui é a Oficial Wang Min, de Pequim. Consegui o relato da única vítima que sobreviveu ao ataque no Templo Lama. Gravei o interrogatório conforme ordenado, mas infelizmente nossos meios de envio estão ficando cada vez mais escassos. Temo que nossas linhas telefônicas também sejam cortadas em breve.

- Me envie o interrogatório completo, da maneira que puder, não importa como! Você tem algum detalhe novo, alguma coisa que ainda não sabemos?

- Parece que as pessoas atacadas não fogem, e são aquelas que pedem por socorro aos gritos mas de jeito mecânico, sem vontade. As que agem de maneira normal, correndo ou se escondendo, não é afetada. Eles parecem ignorá-las propositalmente.

- Agradeço oficial, e aguardo a gravação com a identificação padrão. Deve haver algum jeito de deter estes infelizes, e acabarmos com isso de uma vez!

- Sim senhor, providenciarei o envio agora mesmo, senhor! - disse ela, encerrando a ligação, grudando um adesivo na lateral da fita cassete, escrevendo em seguida: "Pequim - Li Wei".


* YAUN - unidade básica da moeda chinesa renminbi.

Apocalipse: A morte da TerraOnde histórias criam vida. Descubra agora